quarta-feira, 12 de março de 2014

O macaco

        
 Caía uma chuva fina quando o macaco me encontrou. Eu não lembro muito bem quantos anos eu tinha, nem o que realmente se passava com a minha vida, ou o que me interessava, ou motivava, ou como eu vivia e o que eu fazia. Os acontecimentos marcantes da minha memória antes dos fatos ocorridos que narrarei ou não foram de grande importância ou se perderam no meio do que me encontro atualmente. Se é um ou se é o outro, não cabe a mim decidir. A fatalidade me deixou cético, apático e pessimista, assim como plantou desconfiança e medo crônicos dentro de mim. 
Ele já era macaco velho, de pelagem branca e cara emburrada. Provavelmente um babuíno daqueles de grande porte, assustadores e tudo mais. Era a primeira vez que me deparava com uma criatura daquelas frente a  frente, com toda a sua pompa majestosa, sua fisionomia séria e perturbadora, em posição de ataque, como que observando a presa fácil que eu sempre fui. Seus olhos bem abertos me fitavam como se quisessem me ver lutar. Correr, talvez gritar. Tinha certeza que era isso. Tudo o que ele quer é ver o meu desespero, pensei. Correr com todas as minhas forças para que fosse pego dentro de alguns poucos passos. E em seguida? Seria devorado? Instantaneamente ou primeiramente assassinado? Seria lento ou de súbito? Não sei bem porquê, mas acho que andava propenso a tudo aquilo e a me sentir um lixo que realmente precisava ser devorado e que tanto faria se acontecesse ou não, mas não pude deixar de sentir um frio na barriga na hora em que a realidade bateu na minha porta. 
Eu não fui assassinado. Muito menos devorado ou mordido. Pude sair daquela situação sem sofrer nenhuma escoriação ou ferimento. Fechei os olhos, rezei uma oração antiga, que minha mãe me ensinara, e ao abri-los novamente não havia mais macaco algum. A calçada estava tão limpa como geralmente está numa tarde de domingo. Pensei que tudo não se passava de um lapso ou alguma coisa neuronal e dirigi-me à minha casa como estava planejado antes do ocorrido. 
Antes que pudesse esquecê-lo, lá estava ele novamente. Posicionado sobre a minha janela, sentado como um monge budista, calmo e paciente. Parecia estar mais tranquilo do que no nosso primeiro encontro, agora com um olhar de tédio que me deixava nervoso. Tentei ignorá-lo, mas a minha atenção não podia deixar de notar aquela monstruosidade. Nada era produtivo. Nada realmente funcionava. Dias se passavam e onde quer que eu fosse ele me acompanhava. Rapidamente pude notar que ninguém mais via aquela aberração além de mim e passei a suspeitar da hipótese de que estava louco de pedra. Não era possível algo ser visível apenas para um homem. Foi assim que fui ensinado. O óbvio sempre me foi tão confortável. Nunca havia causado problemas antes. Mas agora tinha um macaco que só eu via e que me seguia aonde eu fosse. 
As tardes ficaram mais frias e os domingos mais endomingados. Minhas vestes foram se acinzentando e a comida que ficava na geladeira tinha gosto de isopor. Passei tantos dias sem conseguir dormir que não consegui mais distinguir sonho de realidade. Ora bolas, que diferença fazia, se parecia-me que já fazia tempo que essa qualidade me fora roubada? Uma febre me abateu. Fiquei de cama, trêmulo e delirante, por exatos três dias. Durante todos eles, meu companheiro inseparável não me largou um minuto sequer. Não havia fechar de olhos que o afastasse de mim e o seu olhar parecia tão entediado como nunca. Uma enfermeira foi mandada ao meu quarto para verificar minha temperatura de tempos em tempos e para ver se eu estava precisando de algo. Diversas vezes me pegou aos gritos, no auge do meu delírio, perguntando "o que quer de mim?" para o nada. Para a parede. Para a janela. Minha expressão de medo não devia ser lá muito agradável, pois parecia que ela não gostava muito da energia do quarto. Ou simplesmente não gostava de mim. Ou tinha medo. Não sei. 
No terceiro dia, meu delírio cansou. Não havia mais forças em mim nem mesmo para adoecer. Agradeci a Deus pelo direito de viver até onde eu tinha vivido e me entreguei à morte da forma mais covarde possível. Dirigi-me ao grande macaco e disse que a minha alma agora o pertencia e que era dele o direito de fazer o que bem entendesse com ela. Sua postura mudou. suas pernas se esticaram e seus braços longos me seguraram pelos ombros. Antes que pudesse notar todos os seus movimentos, saltou por cima de mim, girou e se posicionou com os joelhos espremidos nas minhas costas, apoiando-se com suas mãos em torno do meu pescoço. Senti seus dedos longos me enforcando e torcendo a minha garganta. Minha pulsação retumbava em mim como um tambor infernal. "Ande", sussurrou em meu ouvido, e sem poder dizer não, fiz exatamente o que me foi ordenado. Não tive coragem de perguntar para onde, apenas me levantei, e da forma que estava vestido, andei a esmo por não sei quanto tempo. Quanto mais eu andava, mais cansaço eu sentia. Todas as vezes que meu passo vacilava, pudia sentir os malditos detos acocharem meu pescoço, e por alguns segundos o ar me fugia dos pulmões e a vista turvava. Acho que ele sabia que, por mais que a minha morte fosse desejada por mim, meu instinto de sobrevivência não permitiria que eu morresse. O desespero perante o meu sofrimento corporal me faria reagir. E eu precisava reagir, pois com certeza alguma coisa em mim era essencial àquele macaco. Como poderia não ser? Só a mim ele foi destinado, e só a mim ele causa sofrimento. Era um martírio! Uma cruz a qual eu fui condenado a carregar. 
Desde que ele se apossou da minha alma, não pude mais virar as costas momento algum para observá-lo, mas quando fechava os olhos, podia sentir que agora ele estava sorrindo, um sorriso meio débil, de prazer, sádico e tirano. Era horrível. Continuei caminhando. Meu macaco sentia o fim das minhas forças e apertava carinhosamente o meu pescoço. Me causava uma dor tremenda, mas parecia ter entendido o funcionamento do meu corpo. Não mais me tirava o ar. Acho que prezava pela própria sobrevivência. Um parasita precisa da saúde do hospedeiro para continuar vivendo. 
As andanças nos levaram a uma casa aparentemente abandonada, em algum beco que nunca havia visto em canto algum. Era uma mansão caindo aos pedaços, de uma aparência escura e de que não era visitada a muitos anos. "Porão" foi sussurrado ao meu ouvido e um calafrio percorreu por todo o meu corpo, assim como uma lágrima escorreu de um dos meu olhos. Dirigimo-nos à porta que dava ao porão, abrimos-a e começamos a descer a escadaria de madeira mal cuidada. Seus pés me chutavam levemente de ânimo. Parecia estar chegando onde queria chegar e se exaltava com a proximidade. Não havia luz alguma, apenas descia as escadas mecanicamente sem saber se haveria uma próxima.
Um medo brotou de repente. Um medo maior que o da morte, talvez. Tentei dar meia volta, mas os dedos apertaram com tanta força que fraquejei e caí de cara na escada. "Não", sussurrou ele, e me ergui novamente, continuando meu rumo. "Mais rápido" disse ele, enquanto suas pernas se agitavam como as de uma criança quando vê a mamadeira. Desci da forma mais rápida que pude, quase correndo, degrau seguido de degrau. Seu orgão ficara ereto. Senti-o em minhas costas. Seus pés chutavam com força. Sua boca babava meu ombro. Uma enorme luz branca foi se aproximando, demarcando o fim de tudo aquilo. 
Os degraus acabaram. No fim deles, havia um trilho e um carrinho de mina esperando. "Entre". Entrei. Era manual, daqueles que se ergue e desce uma alavança do tipo gangorra. acionei o negócio e lentamente o carrinho começou a se mover. Quanto mais eu fazia, mais velocidade ele ia ganhando e mais nos aproximávamos da enorme luz branca. Parecia ser uma passagem enorme, que serviria para passar um avião tranquilamente. Quanto mais nos aproximávamos, mais a nossa pequenez em comparação à passagem ficava mais a mostra. Mais rápido. Mais rápido. Os trilhos corriam para uma descida, ganhando mais velocidade ainda. Não havia mais necessidade de força manual. O que quer que houvesse ao final daquilo tudo, nos defrontaríamos à toda velocidade, independente da vontade de qualquer um. O portal estava bem na nossa frente. Alto. Majestoso. Fechei os olhos ao cruzar com a luz. 
Passamos. 
Pela primeira vez desde que subira em minhas costas o macaco tirou as mãos do meu pescoço, mas foi apenas para colocar em meu rosto e forçar meus olhos a permanecerem abertos com seus dedos longos. 
Do lado de fora, senti o vento mais frio que já sentira na minha vida. Era como se houvesse adentrado no espaço sideral. Os trilhos se seguiram para fora e começaram a circular por uma enorme construção. Era o lado de fora de algo que não sei descrever de forma alguma. Era o lado de fora do mundo, a única descrição que me parece viável. Uma torre de não sei quantos mil metros. Quiçá alcance a casa dos milhões! Não havia chão para baixo, não havia teto para cima. Minha visão apenas captava um pedaço, um tronco que se erguia infinitamente para não sei onde, enquanto os trilhos seguiam em espiral em torno. O céu se confundia com o que quer que houvesse embaixo, de um preto abismal. Se forçasse a visão, podia ver, ao longe, infinitas outras torres, igualmente sem início e sem fim, com diversas janelas - provavelmente iguais as de onde eu saí - e com trilhos circulando por todas elas. Pendurado em cada uma delas, havia um macaco igual ao que permanecia em minhas costas, mas maior do que qualquer animal que já tenha pisado na Terra. Tão grande era que utilizava a torre para escalar como se fosse o tronco de uma árvore. Uma torre igual a torre que os meus trilhos percorriam. A mesma torre em que eu era ínfimo comparado a qualquer coisa. A mesma torre que eu provavelmente nunca veria o começo, muito menos o fim. E não era apenas um. Em cada torre que minha vista alcançava havia um macaco daqueles, rastejando asquerosamente. Sabia que provavelmente havia um na torre em que estava, mas tentei não pensar nisso. Tentei gritar, mas não saiu som nenhum. Nossos trilhos seguiam para o desconhecido enquanto os macacos rastejavam para não sei onde. Eu atravessara as fronteiras do mundo e não havia trilho de retorno. Não podia pular para me matar, pois o macaco não permitiria, assim como dormir ou fechar os olhos. Nem mesmo morrer, diabos. Na verdade, acho que ali nem mesmo a morte existe. Apenas a angústia. E o medo de nunca deixar de existir. E assim eu sigo. Impotente. De olhos abertos. Rumo não sei pra onde. Sentindo frio. Sentindo medo. É horrível.