sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Novo mundo


Somos azuis
E mirrados
Como as crianças do novo mundo
Somos velhos
E complexados
Como as crianças do novo mundo
Ásperos
E hostis
Embora cedamos ao réquiem do novo mundo

Minha mão que arde
Meu peito que apunhalaste
Meu ego que definhaste
Minha crença que secaste

Tudo isso me dói tanto
Mas tanto!
Enquanto olho teus olhos recatados
Enquanto vejo o pôr-do-sol do novo mundo

Tudo vai secar

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mais romântico, menos autoral


... E Ainda ousas me telefonar?
Esqueceras que teu último suspiro foi aquele
que me tirou a vida?
[silêncio]
E aquela página de caderno
Na hecatombe dos nossos versos
Que prometiam trucidar o maior dos lordes de qualquer estrela?
Aaaaaah...
Se ao menos a metade dos teus olhos
- tão castanhos -
Marcassem uma hora do dia
- uma só -
Para remediar essa minha ânsia imbecil
Já me faria escravo teu
Mas
Se tenho que escolher
Entre ser viciado sem te ter
E ignorar-te sem te ter
Fecho meus olhos
(todas as metades deles)
Ergo meu braço magro:
“Garçom.
Duplo.
Sem gelo”.

sábado, 22 de outubro de 2011

Mr. Hall

                
            Entrei no ônibus às oito e meia da noite e antes mesmo de fazê-lo já sabia que aquilo tudo seria a minha morte.
            - Entre, seu velho filho da mãe! – disse o motorista. Chamava-se Mr. Hall e era cego de um olho. Perdeu a visão de um enquanto comia três de suas putas. Ninguém além dele e das três putas sabe o que aconteceu de fato, apenas que o coroa foi proibido de dirigir um automóvel há mais ou menos dois anos – Como andam as coisas? Arranjou um emprego? Parece feliz, não parece, crianças?
            - Sim, Mr. Hall! – um coro de crianças, todas igualmente sorridentes e vestidas e sentadas no fundo do veículo disseram em uma só voz.
            - Aconchegue-se, rapaz! Pegue uma bebida! Pegue uma garota! Estamos todos aqui para ir rumo ao céu, não é, rapazes?
            - Sim, Mr. Hall!
            - Não se preocupe, meu amigo – disse eu - Estou muito confortável aqui. Só estou passando por alguns problemas que logo vão sumir.
            - Que história é essa de problemas? Vejo tanta alegria na sua cara! E olha que tenho apenas um dos olhos! – disse Mr. Hall, gargalhando de si mesmo. Ajoelhada ao lado dele, uma moça, provavelmente uma de suas putas, lhe pagava um boquete.
            Enquanto observava tudo aquilo, uma mulher de cabelos vermelhos chegou-se lentamente a mim e me abraçou sensualmente.
            - Você não me ama mais? – foi o que ela disse – por que não me ama mais? Você disse que sempre me amaria, não foi, Mr. Hall?
            - Não sei. Foi, crianças?
            - Sim, Mr. Hall!
            - Sinto muito, moça, mas não me lembro de você – foi o que eu disse – mas se quiser que eu a ame, terei todo o prazer de o fazer.
            - Eu não quero nada de você, só que me ame! – disse ela – por que não ama? Havia prometido tantas vezes, mas tantas!
            A velocidade aumentava.
            Um pedaço de carne desliza no centro do veículo.
            - Se me permitir te amar, assim o farei.
            - Por que, pode me dizer? Amar, algo tão simples... Nem isso o faz!
            - Está cagando o pau, meu amigo! – disse Mr. Hall – se tivesse feito o seu papel de homem desde o início! Faltou tão pouco para que pudesse faturar esse pedaço de pecado! E agora, veja bem, meu amigo, irá perder a chance de ter um último prazer nessa sua medíocre vida! Há! Não é tudo uma bosta?
            - Como assim, ultima chance?
            - “Como assim, ultima chance?” – fez ele me imitando, dando um tom débil mental a minha voz – “Por que? Por que?” Ah, faz o favor, meu amigo!
            - ME AMA, PORRA! – gritava a moça a plenos pulmões – ME AMA, PORRA!
            A velocidade aumentava.
            O bolo de carne era uma orgia.
            O grito da moça remexia minha espinha.
            - Estamos todos à beira do inferno, não é, crianças?
            - Sim, Mr. Hall!
            - Será uma queda e tanto, não é, crianças?!
            - SIM, MR. HALL!!!
            - E tudo isso culpa do nosso amigo passageiro, não é, crianças?!
            - OH MEU DEUS, SIM, MR. HALL!!!
            - E RESPONDAM, PELO AMOR DE SEUS PAIS, ESTAMOS OU NÃO ESTAMOS FELIZES POR ISSO, CRIANÇAS???!
            - SIM! SIM! MINHA NOSSA, SIM, MR. HALL!!!
            - POIS APROVEITEM, MEUS AMORES, CHEGOU O MOMENTO MAIS IMPORTANTE DA VIDA DE VOCÊS E SERÁ RÁPIDO COMO UMA PICADA DE ABELHA!!!
            O ônibus escapou da pista e caiu abismo abaixo.
            Explodiu.
            Fim.

domingo, 16 de outubro de 2011

Demagogia


Se tudo é nada
Se tudo é pretexto
Para do nada se falar
E assim contextualizar
Um motivo para todo esse sofrimento
Apenas nada te dou
E assim me afasto
Confuso

sábado, 8 de outubro de 2011

Menina-flor


Se você, menina-flor,
Repete o mantra ancestral
A dor do cuspe de um filho
Corrói a tua imagem vestal
Por vezes a palavra errada
Faz o peito arder à crua
Carne solta fedendo a bosta
Dói a frouxa embocadura
Que chora

Tornar-se-á um fantasma
À sombra do teu destino
Se é de fazer acordo
Renega o teu próprio filho

Enxugando o soluço crivo
Sentirá teu sangue retornar
O sorriso bobo e lascivo
Pequenos e grandes lábios aflorar
E quando a noite te apunhalar
Lembra do sonho do mendigo
Que bêbado, te olhou e disse:
Não chore por seus mortos, menina flor
Reza à Deus, oh pai, todo poderoso
Lembrai-vos, oh senhor, dos vossos filhos!
Teu ventre ainda vai te dar uma penca de filhos!

Sem Título Provisório N°1


Eu acho que sou nada
Enquanto me vejo em tudo
Se admiro a minha invalidez
Assim demonstro a insensatez
Que eu insisto em esconder de mim

Mas se assim me faço inteiro
Ouso dizer que perco até os cabelos
Kafkiando o instante da reprovação
Internalizo o gozo da humilhação
Pedindo desculpas por existir!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lúgubre


O metrô vem às oito
Iluminando a estação.
Pessoas de rosto triste,
Eu, inclusive,
Observam o seu letreiro
Que meio veloz, meio sorrateiro
Me embaça na vista
E eu
Logo eu,
Que não amava ninguém
Deixei, às oito, o metrô ir-se embora
Sem poder ler o letreiro
Veloz e sorrateiro
Nunca mais

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A simbiose do Tabuleiro


-Cinza!
Cinza!
Cinza!
Eu
Cinza!
Apenas eu
Apenas cinza
Apenas isso
-Preto!
Preto!
Preto!
Tu
Preto!
Ausente da verdade
Ausente da verdade
Apenas preto
-O preto cega
meus olhos
cinzas
-Então eu lhe dou
o branco
-O branco expõe
as minhas feridas
cinzas
-E esse cinza, que
cega e fere?
-Mesmo assim ainda
é cinza
- Dor eterna?
- Costumeira
- Masoquista!
- Suportável
- Conformista!
- Agradável
- Otimista!
- Apenas cinza

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Vai à Merda


Merda
Lama encefálica que me escorre os ouvidos
E molha minh’alma de luxúria sem pudor

Vai à merda

Tenho nojo dessa hipocondria
(hipocrisia)
Que Lambegoza o ânus de um artista
Superego de rapariga
(não moça!)
Com sexo ainda nos dentes
E um cigarro apagado no ventre
Ela transa com uma narina só
Sósia da outra

E se nos arredores me procurar
Vai me achar em ti, sem roupa
Sem rima, sem margarina
Resmungando a minha insignificância
Perante a mais nova ordem mundial
Blá, blá, blá
Blá, blá, blá
Sinceramente?
Vai à merda

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Tão profundo que...

Ousado é
Subjugar o escuro,
                             Mal sabendo que o abismo é apenas
                                                                                       o
                                                                                           p
                                                                                             r
                                                                                              e
                                                                                                l
                                                                                                ú
                                                                                                d
                                                                                                 i
                                                                                                 o
                                                                                                 d
                                                                                                 a
                                                                                                 h
                                                                                                 u
                                                                                                 m
                                                                                                 a
                                                                                                 n
                                                                                                 i
                                                                                                 d
                                                                                                  a
                                                                                                  d
                                                                                                   e.

domingo, 11 de setembro de 2011

Anjo Caído

            Reza a lenda que jamais foi visto o rosto de um anjo por alguém mortal. Sua aparência, de tão bela e estupenda, refletiria a pureza dos céus e todo esse brilho levaria à loucura até a mente mais sã.
            Medo, um anjo bastante querido daquela casta de criaturas, pegou-se rindo desse ditado humano.
            O fato é que o clima permanecia nublado no panteão católico desde que o filho pródigo ruiu-se de toda a pompa e decidiu trilhar o seu próprio destino, como um navegador negador. Seu nome havia virado tabu; de todos o indizível, o único impossível. Seus amigos, seus antigos amigos, entregues à bebida. Seu pai, vaidoso, encontrou um rival à altura. Os anjos agora andavam de cabeça baixa, desconfiados, olhando de lado e sussurrando. A era do luto havia começado na Queda e não tinha previsão para recesso.
            Sentado em uma nuvem, Medo olhava para o tempo negro e gélido vindo lá de baixo e pensava exatamente no que mais lhe era proibido. Estranho seria fazer o contrário.
            Enquanto observava a imensidão branca e indiferente, ele encontrou, resguardado sob um aglomerado de nuvens, algo bastante concreto. Mesmo com toda a sua força angelical, mover tal nuvem foi realmente trabalhoso. Nela, notou-se, deitava todas as lágrimas já choradas, todos os pedidos mais delirantes, todos os dizeres mais esquizofrênicos, todos os pensamentos mais doentes, todas as desilusões, todas as dores mais masoquistas, todos os medos do homem.
            Largou-se a movê-la. Trabalho imenso que, seu grito de dor ecoou na eternidade, sendo assim, durante um certo período humano, chamado de câncer.
           
            Embaixo, acredite, havia apenas nada.

            Desapontado, Medo voltou ao reino dos céus. Por sua tristeza, precisava se esconder. Emoções eram proibidas, óbvio. Se fosse visto naquele estado, seria banido para um lugar onde aquela blasfêmia fosse aceita. O Olimpo, talvez; ou, quem sabe, Valhalla. Não importava. O exílio era o pior dos castigos.
            Escondeu-se à sombra de um relâmpago, alimentando-se do medo e da dor. Chorava alto a cada trovão que ressoava, para poder não ser ouvido.
            Não sabia por que, mas aquilo matou sua eternidade. Mal percebia que ali, aquele vazio, era, dentre todos os vazios existentes, exatamente o vazio que seu pai queria mais esconder. O vazio dos vazios. O vazio que o irmão degenerado – a ovelha negra – havia visto e enlouquecido. O vazio protegido com o medo de milhões de almas mórbidas, incluindo os do próprio pai, de todos os seres, o mais temido e o mais temedor.
            Suas lágrimas foram tantas e tão grandiosas que suas vestes reais incharam, incharam e incharam. Incharam tanto que nem mesmo toda a força que possuía, força essa que ergueu sua ruína, pôde segurar seu corpo. Então, pesado como uma constelação, seguiu o curso da gravidade, caindo enfim, exatamente como seu irmão caiu, e exatamente como todos os seus irmãos estão fadados a cair. Enquanto caía, voltou a rir. Não sabia por que, mas lembrou da lenda do rosto do anjo e da morte que acometia a todos. Enfim, soube o motivo da graça: o ditado era verdadeiro, mas com outro desfecho. Não havia beleza nos anjos. Nem luz, nem divino. Apenas um rosto, limpo, seco, humano.

            Pior do que ver o divino no rosto de um anjo é ver a humanidade refletindo nele.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Beth sem Sapatilha



Beth é uma bailarina
Observe-a rodopiar por entre seus giros
Cada revolução uma encenação, cada passo uma obra de arte
Sua leveza é meta humana
Seu corpo exala delicadeza
Desliza de lá para cá, e de cá para acolá, pendulando pelo aposento escuro como um vagalume reluzente
Era uma estrela, Possuía brilho próprio
Sua respiração era quase inaudível, mesmo no ambiente opaco e sem brilho algum. Sua dança era sonora. Seu olhar, música
Sua alma vencia o silêncio
Mas seus pés...

... Seus pés sangravam

A unha do seu calejado pé partira no meio e agora manchava de sangue todo o carpete
Desliza
Desliza
Espirra sangue por onde anda
A dor (por que não tem como não falar dela) era a dor da perda de um filho
Alastrava-se pelo corpo como um vírus,
Causando calafrios de morte
Desliza
Desliza
Segue a bailarina com seu linguajar profético
Sangra
Sangra
Dentro de suas possibilidades, ainda sorri

Um Clown de Shakespeare
Um palhaço triste
Um poeta despoeta
Uma inventora de palavras sem sentido
Um angustiante detentor do destino de bilhões de pequenos corpúsculos
Baila pelas paredes,
Baila pelas paredes, organiza sua vida,
Dá sentido à hora que lhe é bem-vinda
Enxuga a lágrima que lhe consome a face
Mostra os dentes e gira mais rápido para esconder o medo
Ela ama o que faz
Mas sangra
“Sangue de amor”, pensa ela
Um amor amargo, com gostinho de pêssego

Sangra, bailarina, sangra
Segue à morte, bailarina, é a tua sorte
Desce e goza da agonia que é teu cerne
Bailarina, triste e alva como a neve

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Rascunho do diário de um psicopata enclausurado




Ninguém foi ao velório do Bicho Papão.

O fato, triste como foi, não chamou a atenção de nenhum de seus contemporâneos.

Ninguém ficou sabendo.
Ou fingiu não saber...
...Por que,

Drácula está morto;
Frankenstein apodrece num asilo;
Oz numa clínica psiquiátrica
e Norman Bates bateu as botas.

Lorotas, lorotas, lorotas...

Ninguém foi ao velório do bicho papão.
Ninguém se lembra do bicho papão.
Nem do velho do saco.
Nem da perna cabeluda.

Mas isso não poderá ser triste, ora pois!
Ele era um crápula!
Foi-se sua hora, caro maldito!
Descanse sem paz, onde quer que esteja!

Ignoro o teu velório!
Ausento-me de lhe permitir meu luto!
Estragavas a minha beleza!
Vivias como um animal!

Cantemos nós!
Bebemos para esquecer a vida!
Daquele escarro dia após dia
Do sangue que nos desce a goela
Do medo que nos solta a bexiga
Da melancolia que só é a vida

A vida...

Que vida?

Bebemos para esquecer que não existe amor.

...


Ninguém foi ao velório do Bicho Papão.

Que dias tristes são esses que nós vivemos.

O Dono do Mundo



Dentro do peito mais intransigente
Dentro da ânsia firme e quente
Vive morta a força da descoberta
Triste sina do bravo pistoleiro

Seu épico lhe desconstrói por inteiro
Do ponto de partida, áridas terras
Às planícies vespertinas, do logo abismo
Engaiolado, plana como um títere

O seu jogo dura para sempre
Sua dor percorre sadicamente
O homem que governa o mundo

Mas até para ele, que ironia!
A roda do Gan insistentemente gira
O prostituto da Torre de todos os mundos

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Incógnita

                
             Aos vinte e nove anos encontrei-me enterrando o único ser importante da minha vida. Era lua cheia e não havia uma única alma viva – excluindo a minha, ou talvez incluindo – em um raio de quilômetros. Encontrava-me mais ou menos na metade da rodovia interestadual. O céu estava negro, a brisa do vento fria e a terra molhada. Não estava chorando – perdi esse hábito. Nem mesmo remorso algum sentia. Aliás, nenhuma sensação humana era bem vinda em meu corpo há muito tempo.
            Olhei para o chão e pude ver o enorme buraco que havia cavado sozinho. Sem surpresas. Coloquei devagar o corpo de meu fiel companheiro e o observei por alguns minutos. Tentei dizer algo, mas saíram apenas chiados. Talvez uma ótima maneira de fazer-lhe vivo de novo seja lembrando os momentos de sua existência. Mas para poder falar sobre ele preciso voltar um pouco mais no tempo, antes mesmo de conhecê-lo.
            Aos dezenove anos, toda a minha antiga vida havia desmoronado. Não possuía mais amigo algum, muito menos emprego. Larguei os estudos e dediquei-me ao meu único prazer humano: escrever. A única coisa que dava razão para a minha existência. Escrevia sobre qualquer coisa: romances, tragédias, aventuras, terras ermas onde somente em nossos sonhos conseguimos alcançar. Mas eu não escrevia comercialmente. Apenas por puro prazer. Pouco tempo depois, minha única amiga e defensora, minha mãe, deixou essas terras. Meu pai era meu único parente vivo. Alguém que se importava apenas com a sua fábrica e com o lucro no fim do mês. Fazendo-se apenas dois dias da morte de minha criadora, parti sem rumo. Roubei a velha bicicleta de meu pai e vaguei em direção ao norte, sem dinheiro, sem comida, nenhum conhecido, nada. Apenas eu e meu desejo de conhecer novas paisagens que me inspirassem a escrever mais, pois escrevendo eu posso sair desse mundo, mesmo que apenas por um instante.
            Pedalei por dois dias quase sem descanso. Onde eu estava não sei dizer, mas as casas estavam começando a rarear e a estrada tornava-se mais esburacada nesse ponto. Decidi parar um pouco para descansar.  Já era noite. Eu sabia que não iria muito longe dali. Talvez conseguisse seguir até algum vilarejo e mendigar ali pelo resto da minha vida, quem sabe? Encostei a bicicleta na margem do caminho e sentei-me, olhando para o céu límpido.
            De algum lugar, podia ouvir um som. Um gemido. Um chiado, talvez. Vinha de trás de mim, onde havia uma espécie de declinação. Uma leve depressão. Uma estreita trilha – que permitia apenas a passagem de uma pessoa – levava selva adentro. Não havia motivos para temer qualquer coisa que pudesse estar ali. Comecei a descer aquele bosque escuro com ímpeto e a passos largos. A fome devorava-me por dentro. O frio que aquela vegetação – composta de grandes árvores, todas coloridas por um verde bastante escuro – jogava para mim trazia uma sensação de insegurança, que foi crescendo à medida que eu adentrava em sua morada.
            Com o passar dos minutos e o aumentar dos meus passos, percebi que a vegetação tornava-se mais densa, fechando-se ao meu redor. Apressei ainda mais meu passo, queria saber de onde vinha esse som o mais depressa possível. Parecia estar mais perto. Era uma espécie de lamento que ecoava. Sem perceber, havia entrado em um tipo de pântano lamacento, que me cobria os joelhos. O caminhar tornou-se mais difícil. Minha respiração acelerou e meu coração trabalhava a mil. Tinha um cheiro esquisito, aquele lugar. De vez em quando, alguma coisa parecia encostar-se a minhas pernas. Não podia ver o que era por causa da densa lama. Talvez raízes. Talvez serpentes. Talvez...
            Na região mais profunda do bosque, onde tudo era denso e o cheiro forte de carne em decomposição estava em todo lugar, pude distinguir uma espécie de gruta recostada e coberta por plantas. Um meio de camuflagem, talvez. Havia algo ali que emanava um miasma sombrio. Tive receio em adentrar, mas ainda assim o fiz.
            Afastei um pouco a vegetação que ali recobria e cruzei o portal. Não existia luz. O som havia parado. Tudo estava calmo e em perfeito silêncio, com exceção daqueles conhecidos sons que as cavernas produzem: passos ecoados, uma goteira em algum lugar, um morcego que se assustara. Minha presença foi sentida, obviamente. Apenas minha respiração se fazia relutante, quebrando o silêncio do local. Aproximei-me cada vez mais do clímax daquela caverna, onde se encontrava o que quer que seja.
            Depois de mais ou menos dois minutos caminhando, parei de repente. No meio daquela escuridão havia dois pontos vermelhos flutuantes. Dois olhos, pude perceber. Estavam na minha direção. Agora ouvia sua respiração também. Era corrosiva. Aquilo com certeza não era humano.
            Devido a minha distração, não percebi que lá fora tinha começado uma chuva torrencial. Seu barulho agora me vinha aos ouvidos. Pensei na bicicleta de meu pai ao léu, recostada na estrada. Solitária. Mas essa precipitação até que me foi útil. Um raio caiu muito perto da caverna, iluminando tudo a volta. Agora via claramente o que estava próximo a mim.
            Não era nada do que eu já havia visto, certamente. Nem parecia com nenhum animal existente no planeta. Poderia estar festejando por achar uma nova espécie, mas não era o que eu estava fazendo. Estava simplesmente paralisado com a imagem daquele ser. Tinha mais ou menos dois metros de altura. Sem pêlos. Sua cor era azul escuro. Seus olhos, vermelhos, como eu havia dito. Era extremamente magro, expondo seus ossos. Sua face esquelética era alongada e com um nariz bastante esticado. Sua boca era uma cratera sem dentes à mostra. Um buraco sem fim, foi o que me veio a mente. Apenas uma língua enorme jazia ali. Tinha duas orelhas extremamente eretas pareciam chifres gigantescos. Braços maiores do que as pernas. Era isso que estava parado na minha frente. Uma monstruosidade grotesca. Uma criatura horripilante. Uma aberração.
            Tudo estava escuro novamente. Agora, qualquer coisa poderia acontecer. Ouvi seus passos em minha direção. Um seguido do outro. Lentamente.  Estava tão incrivelmente perto que conseguia sentir o vento de sua respiração. Tirei a metade de uma maçã que havia em meu bolso e ofereci ao dono da casa que rejeitou meu presente. Parecia sentir nojo daquela fruta. “Um carnívoro, talvez?” pensei. A criatura fitou-me por mais algum tempo, em seguida, ouvi seus passos afastarem-se mais para o interior da caverna. Sua respiração agora estava mais devagar. “Talvez fosse dormir” pensei. Decidi fazer o mesmo. Por incrível que pareça, não senti medo do monstro.
            Ao despertar, senti algo nunca sentido por mim. Uma verdadeira fome, ago que me retirava as forças e corroia as paredes do estômago. Não havia comido nada há dois dias além de uma maçã. Mal conseguia me mexer. Não fazia idéia de quanto tempo tinha se passado desde que dormi, mas já havia amanhecido. A criatura estava na minha frente, a me observar. Seus olhos vermelhos arregalados. Tentei dizer algo, mas a única coisa que veio foi uma crise de tosses. O ser pareceu entender algo, adentrando a caverna. Esperei para saber o que ele iria fazer. O que ocorreu era a última coisa que eu esperava, caro leitor. O cujo apareceu para mim com a metade de um bezerro recentemente morto que deixava um rastro de sangue por onde passava. Seu cheiro era forte e me revirava o estômago, mas não sinto vergonha de dizer que o devorei inteiramente. Apenas os ossos sobraram. Minha fome era voraz. Sentia-me como um animal. Dormi por dois dias depois disso.
            Ao acordar, encontrei-me sozinho. Não havia criatura alguma – nem comida. Minha fome voltara e não tinha bezerros sangrentos na caverna. Estava de noite – perdi toda a noção de tempo que eu tinha – e o frio entrava na gruta. Decidi sair para procurar algo para comer. A sensação que eu sentia era intrigante: estava bem como nunca estive antes. Meu corpo parecia forte e saudável, apesar da fome. O ar entrava pelas minhas narinas e me dava ânimo. Sentia vontade de correr, saltar, atacar. E foi isso que fiz, caro leitor. Minha vontade de comer guiou-me até o meu destino. Tinha achado o lar de um casal de lebres brancas. Inicialmente, senti pena dos pobres animais, mas meu estômago falava mais alto. A lei do mais forte, certo? Apertei os pescoços dos coitados. Lágrimas escorreram pelos meu olhos. Era abominável o que eu estava fazendo. Alguns dias atrás, morava em uma casa luxuosa e todo o conforto. Agora, minha existência resumira-se em caçar animais. Sobreviver com minhas próprias mãos, literalmente. Acho que agora posso sentir o que os catadores de lixo sentem, ao procurarem alimento nos restos dos ricos. Voltei então para a gruta da criatura – que eu decidi chamar de Incógnita – e lá estava ele, alimentando-se de um cervo. Ao término, voltei a dormir mais uma vez.
            Quero relatar, caro leitor, um acontecimento estranho durante minha moradia junto do Incógnita. Certa vez, acordei ainda pela manhã, diferentemente do normal. Nesse dia, senti-me horrível. Tentei sair do lugar, mas não consegui. O sol parecia ferir-me os olhos. Não era como se eu houvesse me acostumado com a escuridão. Era uma dor que percorria todo o meu corpo e queimava-me os olhos. Nascia uma espécie de intolerância ao sol em mim. Algo que não era normal, certamente.
            Todos os dias eu saía à noite com meu companheiro de caçadas em busca de alimentos. Nunca nos falávamos, já que ele não entendia meu idioma. Por causa disso, andei perdendo o costume de falar. Passávamos a noite fora, em busca de alimentos, e voltávamos antes do sol nascer, obviamente.
            Não havia mais nenhuma noção de datas para mim. Todos os dias eram iguais. Acabei acostumando-me com aquele tipo de vida. Eu estava adquirindo os hábitos de Incógnita. Sua postura, seus modos, seu estilo de vida. Lembro-me claramente de uma vez que nos aventuramos a ir mais longinquamente em busca de alimento e acabamos chegando à rodovia interestadual, onde estava passando um homem a cavalo. Ele, ao ver eu e o incógnita, apressou-se e fugiu do local o mais depressa possível.
            Porém, depois de tudo que ele foi capaz de fazer por mim, acabei estragando tudo...
            Depois de longos dez anos, acordamos um dia em um verdadeiro dilúvio.  A chuva estava desabrigando os animais e arrancando as árvores. Fora a pior de todas que eu já havia presenciado. Fiquei terrivelmente assustado. Antes mesmo de poder fazer qualquer coisa, o início do fim aconteceu: um raio atingiu a estrutura da caverna – que não era das melhores – desmoronando sua entrada. A passagem estava bloqueada. Eu agora era um preso, junto apenas do ser de olhos vermelhos que ao meu lado estava. Fui falar algo, mas só saíram chiados.
            As horas foram passando e eu sabia que nunca sairíamos dali. Ninguém jamais passou pelo bosque durante esses dez anos. Por que passaria agora? Morreríamos de fome, e quando nos acharem, só restarão os ossos.
            Fome. Esta é a palavra que resume tudo. Na verdade, a palavra que move o mundo. Todos os animais vivem em função da sobrevivência. Até mesmo o ser humano, que julga-se tão racional, depende sua vida à esse instinto. Fome de alimento, de dinheiro, de poder. O home criou infinitas fomes para si, tornando-as a sua razão de viver. A minha era apenas a elementar e primitiva, aquela que acompanha os seres vivos desde o início da existência.
            Baseados nos que contei, muitos leitores poderão deduzir meus próximos passos. Não sei se esse seria o seu caso, caro leitor, mas isso não importa. O que importa é que, devido à essa fome, perdi totalmente o controle dos meus instintos e decidi que tinha de matar o meu companheiro. Jamais faria isso em sã consciência, mas eu não estava nela. Olhei para ele. Seus velhos olhos rubros me fitavam como sempre. Certa raiva começou a crescer dentro de mim. “Por que deixar um ser como esse vivo? Isso é uma aberração! Uma monstruosidade! Estarei fazendo um bem para o planeta ao matá-lo. Animal. Animal!” foram alguns de meus pensamentos. Os homens sempre precisam criar uma desculpa para cometer suas atrocidades, não é?
            Matei-o, caro leitor. E fiz isso sem pena alguma. Não esperei, apenas alimentei-me do que estava ao meu alcance o mais rápido possível. A necessidade faz o homem, claro. Qualquer um faria a mesma coisa em meu lugar, não é?
            Enquanto devorava o seu ventre, seu braço foi de encontro ao meus. Suas garras, grandes e afiadas, entraram na minha pele. Puxei de imediato, rasgando-me mais ainda. Estava vivo, o desgraçado. Sua força era incomparavelmente maior que a minha, ainda que machucado. Com um chute me empurrou para longe. Seria impossível derrotá-lo. Corri inconscientemente. Talvez isso eu conseguisse fazer melhor, devido ao grave ferimento que o afligia. Mesmo assim, ganhava terreno aos poucos, chegando perto de mim. Sua respiração ofegante ecoava pela gruta, sentia-o se aproximando.
            Meus passos me levaram para a parte mais interna do local. Nunca pude imaginar que aquela caverna tivesse tamanha profundidade. Minhas pernas começavam a se entregar, meu pulmão aos poucos tornava a se acomodar, fazendo com que o incógnita se aproximasse. Seu choque comigo era inevitável. Depois do que eu fiz, seria impossível sobreviver ao ataque de tal criatura.
            Era incrível! No fim da gruta havia uma saída, que dava do outro lado do bosque, com uma estrada rumo a rodovia interestadual! Só podia ser um milagre divino! Aquela visão me deu um ânimo novo, corri com forças que não esperava ter. A esperança novamente brilhando em meu peito. O monstro, aos poucos perdendo o fôlego, tanto que com mais um quilômetro vencido, a criatura entregou-se ao próprio cansaço, despejando sangue para todos os lados. Voltei e terminei o serviço que não pude completar anteriormente. Alimentei-me de sua carne, enterrei-o próximo a rodovia. Um carro passou ao lado e me viu fazendo tal coisa.
            Voltei para a caverna. De quando em vez dou uma passada pela rodovia, para ficar a escutar as conversas dos que passam tranqüilos. Ouvi boatos de que consideram tal bosque assombrado por uma criatura monstruosa. Seria o incógnita? Ou seria eu? Não importava mais. Minha antiga vida fora abandonada por inteiro. Os humanos agora só serviam para alimento.  
            

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Valkyria



Quando de repente me vi, Valkyria
meu rosto todo era um circo
meu palco amplo, as estrelas
meu braço, meu lado, meu medo

Mas quando cedo nasceu o dia
e assim te vi, ardida
suado, neguei-me até o osso
destoei do meu próprio encosto
amei-te como a um espelho

Alucinado, perdi a compostura
alinhei-me de forma louca e crua
minguando em torno da tua sombra
idolatrando a síncope do teu beijo

Mas como num turbilhão sublime
minha ânsia disfarçou-se em crime
quando notei que toda aquela alegria
me era imediatamente tardia
diante da tua carne, triste e fria

Doppelgänger


Eu sou
Antes de tudo
Um apaixonado
Inconscientemente, pois
Um Doppelgänger de mim mesmo
Que não sabe montar um verso
Muito menos amar
Massageio-me cerebralmente
Sexualmente, intelectualmente
Sendo assim, não mais que assim,
Desfaço-me de qualquer modéstia
Sou, ao mesmo tempo,
Incubus e Succubus
Dois demônios na cabeça
Dois amores inexistentes
Andando de lá pra cá
Me corroendo as entranhas
Me lembrando que estou vivo
Sou?
Sou nada!
Sou menos que o vento que se move
E mais do que o desejo de se matar
Um escarro do oceano atlântico
Um ser humano
Humano ser um?

Silêncio



Silêncio
É assim que as coisas são
Eu preciso de você
Pes-ta-ne-jar

Mexendo meus pezinhos
Mexendo minhas asas
Abro os olhos devagar
E simplesmente

Silêncio

O líquido me protege
O cordão me alimenta
As asas me libertam
A cabeça me desorienta

Ali eu fico
Ali eu permaneço
Oito dedos em cada mão
Uma lombriga escatológica

Nada brilha
Nada cega
Nada ofusca
Nada mata
Nada enlouquece
Nada
Nem ninguém

Silêncio

...


 De algum jeito, de alguma forma, a escuridão pareceu tomar conta de mim. Perambulei ruas e esquinas, suspirei palavras, olhei o que não devia.
                Com o tempo não havia mais tempo.
                Com a noite não havia mais noite.
                Com o lábio, não mais bebida.
                Com a neblina, não mais esperança.
                Não sei ao certo as coisas que me aconteceram. Num período de uma semana parecia estar andando como se meus pés se guiassem sozinhos. Não lembro, não lembro, não lembro. Só sinto o nojo das coisas que desconheço e o medo de seus fantasmas me assombrando a noite. Um CD triste, tocando canções melancólicas com acordes doentios. Um cheiro esquisito que me dava náusea. Estava sempre em vários lugares ao mesmo tempo, mas nunca verdadeiramente em algum lugar. Respirar estava se tornando corrosivo.
                Levantei da cama. Um passo de cada vez, é o que dizem. Corram todos, foi o que pensei.
                Tinha um cadáver embaixo da minha cama.
                Não acreditei quando vi. Estava apenas com uma mão para o lado de fora, como num último e agonizante pedido de misericórdia. Respirei fundo, agachei-me e puxei o corpo que ali se encontrava. Era uma mulher, aparentemente com uns vinte anos, cabelos pretos, pele clara, minha altura. Estava com os olhos abertos e um pano que lhe cobria o rosto, amarrado na nuca, e que ia até o pescoço. Fora deixada pelo incerto, completamente nua e sob a minha cama. Estava muito magra, como uma dependente química. Pernas finas, vagina cabeluda. Inseri um dedo ali. Não havia sinal de lubrificação. Óbvio.
                Verifiquei a casa: todos dormindo. Parecia que era noite. Por que estava dormindo e acordado de noite, não faço idéia.
                Não costumo ter sono inconstante.
                Não costumo ter pesadelos.
                O corpo estava extremamente frio. Pus a mão em seu pulso para verificar se estava realmente morta – idiotice, não fazia a mínima idéia de como se fazia – não senti nada, nenhum sinal de existência, nem um mínimo suspiro de vitalidade. Os olhos sem brilho pareciam os meus. Desviei o olhar. Pensar nisso era incômodo.
                Tentei pensar no que fazer, tentei pensar em avisar meus pais, ou ligar para a polícia, ou quem quer que valha. Livrar-me daquele corpo e ser feliz para sempre. Esquecer qualquer problema e respirar tranquilamente enquanto EU gargalho de MIM.
                Mas não podia.
                Não conseguia.
                E antes que percebesse, havia decepado sua perna até embaixo do joelho.
                Corri rapidamente. Procurei o maior saco que poderia achar e coloquei-a dentro, empurrando o corpo novamente para debaixo da cama. A perna, que agora começava a jorrar sangue devagar, foi parar na pia do banheiro. Apertei-a da base do pé até o corte, tentando expulsar todo o sangue. A pia coloriu-se de vermelho tão rapidamente quanto o tempo passava. E eu lá. Eu estava lá. Era eu quem segurava a perna. Deuses, era eu quem sorria morbidamente com o toque da carne morta. Exatamente aquele cara que há alguns anos atrás corria descalço pelas ruas, brincando de viver e desejando apenas sua mãe.
                Eu, Eu, Eu.
                Sentei na privada pensando no que deveria fazer agora. Qual seria o limiar para que uma pessoa pudesse se matar? Havia limiar? Eu queria me matar? Não sei por que, mas mesmo tal garota já estando morta, senti como se a tivesse matado.
                E ao mesmo tempo, morrido por dentro.
                Olhei para o pedaço de carne frio e dessa vez vomitei. Vomitei uma pasta branca, parecida com aquela que se passa nos dentes. Tinha gosto de tristeza. Limpei com água, mas sabia que seria inútil. Alguns amargos jamais poderão ser tirados da boca.
                Enquanto pensava, bateram na porta do banheiro.
                Saltei da privada instantaneamente. Peguei a perna, andei para lá e para cá no banheiro como se pudesse fazer alguma coisa. Aquilo jamais desceria na privada.
                - Pois não? – perguntei.
                - Eu sou a Morte e você foi um menino mal. Agora precisamos conversar.
                Não tinha medo da morte. Não naquele momento. Sentia que o que eu havia feito já era heresia o bastante para rasgar os portões do inferno e conseguir um passaporte de pelo menos uns cinqüenta mil anos por lá. Mas não me importava.
                Mas ao abrir a porta, deparei-me com a figura de meu pai. Alto, majestoso, onipotente. Seu olhar para baixo me encarava os olhos. Sua expressão de raiva me consumia por dentro. Sua desaprovação seria pior que a morte. Ele não podia saber do corpo.
                Ele não podia saber da perna.
                - O que faz acordado essa hora? – perguntou Ele.
                - Nada, pai. Em poucos minutos estarei de volta a cama – respondi.
                - Pensa que está de férias? Pensa que eu estou de férias? Nós precisamos descansar, e você também.
                - Eu entendi, pai. Deixe-me só terminar o que estava a fazer que eu saio.
                - O que é isso que esconde nas costas?
                (Ele notara a perna)
                - Nada – dei um passo para trás.
                - Deixe-me ver! – bradou ele, avançando sobre mim. Pôs as mãos em meu ombro e virou-me com força. A visão da perna o fez recuar.
                - Meu Deus! É uma perna! – gritou o homem.
                O susto fez acordar minha mãe, que correu para ver o que havia de errado. Seu grito foi ainda maior.
                - Eu, eu posso explicar tudo! – tentava justificar – acalmem-se, pai e mãe! Se me deixarem explicar, vão entender que…
                - Minha Nossa Senhora! O que diabos você fez??? – gritava o pai a plenos pulmões. A mãe, encostada na parede, respirava ofegante, olhos arregalados.
                - Eu não fiz nada! Eu juro! Encontrei tudo desse jeito!
                Pela porta do meu quarto, uma poça de sangue começava a aparecer. O Pai correu e abriu a porta. O cheiro de coisa pútrida invadia todo o ar da casa. A mãe vomitou quando viu o chão do quarto inteiro tingido de vermelho. O Pai, forte e viril, correu para o cômodo, puxando o saco debaixo da cama. Como poderia ter apodrecido tão rápido? Era loucura! Todo o corpo da moça estava preto. Germes saiam de seus orifícios do rosto. Seu cabelo ainda bonito. Seus olhos brancos ainda encaravam. Sua vagina ainda seca.
                - Por Jesus Cristo! – gritou o Pai desesperado.
                - Eu não fiz nada, eu juro! Eu juro para você, meu Pai! Eu prometo que nunca mais farei besteira! Eu prometo que nunca mais irei pecar, ó Pai!
                - Você é louco! Um doente! Entendeu o que eu disse?? Você vai queimar no inferno, seu desgraçado!
                Ajoelhei-me ao chão. Foi uma cena linda. Ajoelhado na poça de sangue, com as mãos vermelhas, erguidas ao ar, ao teto do quarto, ao rosto de meu Pai. Sua face toda poderosa. Seu punho punitivo. Sua voz onipresente. Minha mãe, coitada, recostada contra a parede, com a mão no peito. Transpirava avidamente. Eu chorava como uma criança. Como a criança que eu era há anos atrás. Como a criança que eu ainda era. Chocava minhas mãos contra o chão. O sangue respingava sobre minha face, manchando o homem do crime. Eu era o homem do crime. Sabia disso. Mas mesmo assim, precisava do perdão do Pai. Mesmo que tivesse que negar quem eu era.
                - Por que, meu Pai? Por que está fazendo isso comigo? Por que me punes? Por que não me entendes? Por que, ó pai?
                Morri de desgosto de mim mesmo.