terça-feira, 24 de junho de 2014

Não ser


Dizer aquilo que só o coração sente é como a impossibilidade de trapacear no jogo inconstante da morte. O oceano me chama sem que eu me aperceba e fisga minha alma, embargando a minha voz. Meus olhos molham. Existe um momento - um único e rápido momento - em que não é exatamente nem dia nem noite. Nem entardecer. É algo que não possui lugar ou tempo, mas mesmo assim é sentido. Sentado na grama à sombra do salgueiral, meus olhos clamam em desespero diante daquilo que não tem lugar. Um vento frio vem para a orla, dos confins do oceano, das geleiras glaciais, ganha feições tropicais e chega inundando as almas das pessoas solitárias e apertando o peito dos esquecidos. O desespero irremediável que me dominaria os membros, absorto em um delírio histérico, me preencheria durante toda a gélida e sombria noite, onde meu medo seria tão grande que não caberia dentro de mim. Talvez morrerei, não sei. Diante de tantas possibilidades, sinto apenas que de forma alguma continuarei a ser eu mesmo. Em contrapartida, a beleza e a ode à vida, que me eram tão reais e presentes no raiar do dia, ao canto do galo, evaporaram sem deixar muitos rastros, exceto um cheiro de saudade que me retira o verbo e embaraça a minha visão. O futuro me reserva a desventura da escuridão palpável e o passado agora é um retrato frio da alegria de outrora. Minha boca seca molha em vão os lábios. O não-ser não era,  e a maldição do inexplicável paira em mim, diante de um sol poente que não consegue representar dia, tarde ou noite. É só um momento. Um único momento, que em questão de segundos não mais existirá. Entretanto, ali estava eu, preso na indiferença do tempo, na ignorância do destino, naquilo que era o que eu jamais seria enquanto ainda fosse. Doeu tanto, de uma forma tão intensa, que pude perceber que sempre serei sozinho. Nada nem ninguém me faz companhia, e a inconsistência dos segundos acabara me prendendo no que nada prende. Talvez o tempo passe. Talvez a frigidez da noite me mate e eu renasça na glória do amanhecer. Talvez. Acho até que o tempo deva ter  de fato passado. Que as estações tenham passado por mim. Mas nada mais me pertencia e eu mesmo não pertencia mais a nada. Seja quando me levanto, seja quando me sento, permaneço presente na suprema ausência. Preso na eternidade de um segundo, chorando as lágrimas do não-entendimento. 

terça-feira, 17 de junho de 2014

"Onde andarás minha náusea?"
Perguntava  a estranhos na rua, amarelo e tuberculoso,
Absorto em devaneios esquizofrênicos.

Ora, eu sou o delírio mais nefasto de mim mesmo
E a ausência da minha ânsia me afastava da beira do abismo do meu próprio eu
[o que me enoja mais do que qualquer coisa]

Faço vigília nos portões do inferno, certo de que ali encontrarei resposta ao grito que me foi roubado
Artimanha das mais ousadas, mãe da prisão cadavérica do ser.

"Minha nausea?", repetia a ermo, pálido e moribundo perante os dezenove guardas do vale das sombras.
Que me mostravam dentes claustrofobicamente brancos.

Minha voz tombara antes de mim.
E era ali
Diante do vale das sombras, onde repousava o âmago da minha busca

Mas não havia esperança:
Eu já estava morto

sábado, 14 de junho de 2014

Num quarto empoçado de sangue,
escrevi aquilo que eu era, refletido na mais atroz das anomalias:
uma fonte de ausência e monarquia excludente,
pertencente ao reino dos que nada fazem.

A noite me trancara no pior dos pesadelos.
Redes supercorpóreas me transformavam num asco
daquilo de mais imundo que poderia existir.
Incluso no processo de me redimir, deitei 
na lama fria e me fundi ao inferno da ataraxia,
representando naquele recinto toda a estabilidade vazia do que mais me motivava.

Eu enlouqueci
E diante de uma massa de pessoas trancafiadas num quarto feito de carne, fluidos e tristeza 
Penetrei na boceta da sequela humana 
E ejaculei as lágrimas da minha evanescência.

Não havia existência perante o divino,
portanto,
toda e qualquer angústia merecia ser respeitada,
ampliada e idolatrada.
A luz cegava meus olhos e a escuridão grosseira
era a única forma de acalanto num mundo de alegrias que não me eram de direito.

Meia-noite. Minh'alma pertencia ao diabo.

Vide, a ânsia do enfermo
Fome em qualquer instância
Transforma-se ante uma transa
De incontáveis desconsertos

A existência lhe escapa pelos dedos
E num riso débil e insolente
Vomita a massa cinzenta de sua mente
Encolhido e banhado no próprio sebo

Agora, escravo da miséria humana
Perante o rei da vala mais mundana
Curva-se e promete servidão

Pois a morbidez a alma lhe sana
-Mesmo que em fezes, mijo e lama-
Assim como faz qualquer religião!

quarta-feira, 12 de março de 2014

O macaco

        
 Caía uma chuva fina quando o macaco me encontrou. Eu não lembro muito bem quantos anos eu tinha, nem o que realmente se passava com a minha vida, ou o que me interessava, ou motivava, ou como eu vivia e o que eu fazia. Os acontecimentos marcantes da minha memória antes dos fatos ocorridos que narrarei ou não foram de grande importância ou se perderam no meio do que me encontro atualmente. Se é um ou se é o outro, não cabe a mim decidir. A fatalidade me deixou cético, apático e pessimista, assim como plantou desconfiança e medo crônicos dentro de mim. 
Ele já era macaco velho, de pelagem branca e cara emburrada. Provavelmente um babuíno daqueles de grande porte, assustadores e tudo mais. Era a primeira vez que me deparava com uma criatura daquelas frente a  frente, com toda a sua pompa majestosa, sua fisionomia séria e perturbadora, em posição de ataque, como que observando a presa fácil que eu sempre fui. Seus olhos bem abertos me fitavam como se quisessem me ver lutar. Correr, talvez gritar. Tinha certeza que era isso. Tudo o que ele quer é ver o meu desespero, pensei. Correr com todas as minhas forças para que fosse pego dentro de alguns poucos passos. E em seguida? Seria devorado? Instantaneamente ou primeiramente assassinado? Seria lento ou de súbito? Não sei bem porquê, mas acho que andava propenso a tudo aquilo e a me sentir um lixo que realmente precisava ser devorado e que tanto faria se acontecesse ou não, mas não pude deixar de sentir um frio na barriga na hora em que a realidade bateu na minha porta. 
Eu não fui assassinado. Muito menos devorado ou mordido. Pude sair daquela situação sem sofrer nenhuma escoriação ou ferimento. Fechei os olhos, rezei uma oração antiga, que minha mãe me ensinara, e ao abri-los novamente não havia mais macaco algum. A calçada estava tão limpa como geralmente está numa tarde de domingo. Pensei que tudo não se passava de um lapso ou alguma coisa neuronal e dirigi-me à minha casa como estava planejado antes do ocorrido. 
Antes que pudesse esquecê-lo, lá estava ele novamente. Posicionado sobre a minha janela, sentado como um monge budista, calmo e paciente. Parecia estar mais tranquilo do que no nosso primeiro encontro, agora com um olhar de tédio que me deixava nervoso. Tentei ignorá-lo, mas a minha atenção não podia deixar de notar aquela monstruosidade. Nada era produtivo. Nada realmente funcionava. Dias se passavam e onde quer que eu fosse ele me acompanhava. Rapidamente pude notar que ninguém mais via aquela aberração além de mim e passei a suspeitar da hipótese de que estava louco de pedra. Não era possível algo ser visível apenas para um homem. Foi assim que fui ensinado. O óbvio sempre me foi tão confortável. Nunca havia causado problemas antes. Mas agora tinha um macaco que só eu via e que me seguia aonde eu fosse. 
As tardes ficaram mais frias e os domingos mais endomingados. Minhas vestes foram se acinzentando e a comida que ficava na geladeira tinha gosto de isopor. Passei tantos dias sem conseguir dormir que não consegui mais distinguir sonho de realidade. Ora bolas, que diferença fazia, se parecia-me que já fazia tempo que essa qualidade me fora roubada? Uma febre me abateu. Fiquei de cama, trêmulo e delirante, por exatos três dias. Durante todos eles, meu companheiro inseparável não me largou um minuto sequer. Não havia fechar de olhos que o afastasse de mim e o seu olhar parecia tão entediado como nunca. Uma enfermeira foi mandada ao meu quarto para verificar minha temperatura de tempos em tempos e para ver se eu estava precisando de algo. Diversas vezes me pegou aos gritos, no auge do meu delírio, perguntando "o que quer de mim?" para o nada. Para a parede. Para a janela. Minha expressão de medo não devia ser lá muito agradável, pois parecia que ela não gostava muito da energia do quarto. Ou simplesmente não gostava de mim. Ou tinha medo. Não sei. 
No terceiro dia, meu delírio cansou. Não havia mais forças em mim nem mesmo para adoecer. Agradeci a Deus pelo direito de viver até onde eu tinha vivido e me entreguei à morte da forma mais covarde possível. Dirigi-me ao grande macaco e disse que a minha alma agora o pertencia e que era dele o direito de fazer o que bem entendesse com ela. Sua postura mudou. suas pernas se esticaram e seus braços longos me seguraram pelos ombros. Antes que pudesse notar todos os seus movimentos, saltou por cima de mim, girou e se posicionou com os joelhos espremidos nas minhas costas, apoiando-se com suas mãos em torno do meu pescoço. Senti seus dedos longos me enforcando e torcendo a minha garganta. Minha pulsação retumbava em mim como um tambor infernal. "Ande", sussurrou em meu ouvido, e sem poder dizer não, fiz exatamente o que me foi ordenado. Não tive coragem de perguntar para onde, apenas me levantei, e da forma que estava vestido, andei a esmo por não sei quanto tempo. Quanto mais eu andava, mais cansaço eu sentia. Todas as vezes que meu passo vacilava, pudia sentir os malditos detos acocharem meu pescoço, e por alguns segundos o ar me fugia dos pulmões e a vista turvava. Acho que ele sabia que, por mais que a minha morte fosse desejada por mim, meu instinto de sobrevivência não permitiria que eu morresse. O desespero perante o meu sofrimento corporal me faria reagir. E eu precisava reagir, pois com certeza alguma coisa em mim era essencial àquele macaco. Como poderia não ser? Só a mim ele foi destinado, e só a mim ele causa sofrimento. Era um martírio! Uma cruz a qual eu fui condenado a carregar. 
Desde que ele se apossou da minha alma, não pude mais virar as costas momento algum para observá-lo, mas quando fechava os olhos, podia sentir que agora ele estava sorrindo, um sorriso meio débil, de prazer, sádico e tirano. Era horrível. Continuei caminhando. Meu macaco sentia o fim das minhas forças e apertava carinhosamente o meu pescoço. Me causava uma dor tremenda, mas parecia ter entendido o funcionamento do meu corpo. Não mais me tirava o ar. Acho que prezava pela própria sobrevivência. Um parasita precisa da saúde do hospedeiro para continuar vivendo. 
As andanças nos levaram a uma casa aparentemente abandonada, em algum beco que nunca havia visto em canto algum. Era uma mansão caindo aos pedaços, de uma aparência escura e de que não era visitada a muitos anos. "Porão" foi sussurrado ao meu ouvido e um calafrio percorreu por todo o meu corpo, assim como uma lágrima escorreu de um dos meu olhos. Dirigimo-nos à porta que dava ao porão, abrimos-a e começamos a descer a escadaria de madeira mal cuidada. Seus pés me chutavam levemente de ânimo. Parecia estar chegando onde queria chegar e se exaltava com a proximidade. Não havia luz alguma, apenas descia as escadas mecanicamente sem saber se haveria uma próxima.
Um medo brotou de repente. Um medo maior que o da morte, talvez. Tentei dar meia volta, mas os dedos apertaram com tanta força que fraquejei e caí de cara na escada. "Não", sussurrou ele, e me ergui novamente, continuando meu rumo. "Mais rápido" disse ele, enquanto suas pernas se agitavam como as de uma criança quando vê a mamadeira. Desci da forma mais rápida que pude, quase correndo, degrau seguido de degrau. Seu orgão ficara ereto. Senti-o em minhas costas. Seus pés chutavam com força. Sua boca babava meu ombro. Uma enorme luz branca foi se aproximando, demarcando o fim de tudo aquilo. 
Os degraus acabaram. No fim deles, havia um trilho e um carrinho de mina esperando. "Entre". Entrei. Era manual, daqueles que se ergue e desce uma alavança do tipo gangorra. acionei o negócio e lentamente o carrinho começou a se mover. Quanto mais eu fazia, mais velocidade ele ia ganhando e mais nos aproximávamos da enorme luz branca. Parecia ser uma passagem enorme, que serviria para passar um avião tranquilamente. Quanto mais nos aproximávamos, mais a nossa pequenez em comparação à passagem ficava mais a mostra. Mais rápido. Mais rápido. Os trilhos corriam para uma descida, ganhando mais velocidade ainda. Não havia mais necessidade de força manual. O que quer que houvesse ao final daquilo tudo, nos defrontaríamos à toda velocidade, independente da vontade de qualquer um. O portal estava bem na nossa frente. Alto. Majestoso. Fechei os olhos ao cruzar com a luz. 
Passamos. 
Pela primeira vez desde que subira em minhas costas o macaco tirou as mãos do meu pescoço, mas foi apenas para colocar em meu rosto e forçar meus olhos a permanecerem abertos com seus dedos longos. 
Do lado de fora, senti o vento mais frio que já sentira na minha vida. Era como se houvesse adentrado no espaço sideral. Os trilhos se seguiram para fora e começaram a circular por uma enorme construção. Era o lado de fora de algo que não sei descrever de forma alguma. Era o lado de fora do mundo, a única descrição que me parece viável. Uma torre de não sei quantos mil metros. Quiçá alcance a casa dos milhões! Não havia chão para baixo, não havia teto para cima. Minha visão apenas captava um pedaço, um tronco que se erguia infinitamente para não sei onde, enquanto os trilhos seguiam em espiral em torno. O céu se confundia com o que quer que houvesse embaixo, de um preto abismal. Se forçasse a visão, podia ver, ao longe, infinitas outras torres, igualmente sem início e sem fim, com diversas janelas - provavelmente iguais as de onde eu saí - e com trilhos circulando por todas elas. Pendurado em cada uma delas, havia um macaco igual ao que permanecia em minhas costas, mas maior do que qualquer animal que já tenha pisado na Terra. Tão grande era que utilizava a torre para escalar como se fosse o tronco de uma árvore. Uma torre igual a torre que os meus trilhos percorriam. A mesma torre em que eu era ínfimo comparado a qualquer coisa. A mesma torre que eu provavelmente nunca veria o começo, muito menos o fim. E não era apenas um. Em cada torre que minha vista alcançava havia um macaco daqueles, rastejando asquerosamente. Sabia que provavelmente havia um na torre em que estava, mas tentei não pensar nisso. Tentei gritar, mas não saiu som nenhum. Nossos trilhos seguiam para o desconhecido enquanto os macacos rastejavam para não sei onde. Eu atravessara as fronteiras do mundo e não havia trilho de retorno. Não podia pular para me matar, pois o macaco não permitiria, assim como dormir ou fechar os olhos. Nem mesmo morrer, diabos. Na verdade, acho que ali nem mesmo a morte existe. Apenas a angústia. E o medo de nunca deixar de existir. E assim eu sigo. Impotente. De olhos abertos. Rumo não sei pra onde. Sentindo frio. Sentindo medo. É horrível.  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Um Mito




Mito: s.m. Narrativa popular ou literária, que coloca em cena seres sobre-humanos e ações imaginárias, para as quais se faz a transposição de acontecimentos históricos, reais ou fantasiosos (desejados), ou nas quais se projetam determinados complexos individuais ou determinadas estruturas subjacentes das relações familiares.
Desde que me entendo por gente, tinha para mim uma ilha. Ficava em algum lugar entre o atlântico e o pacífico, rodeada por um mar de um azul incrivelmente cristalino, de forma que, pela manhã, podia-se andar vários metros mar adentro, com uma água que não chegava nem mesmo perto dos joelhos, vendo toda a movimentação marinha e o nado maravilhoso dos pequenos peixes, e de noite, um fenômeno que não sei explicar fazia a água brilhar, de forma que caminhar por aquelas bandas te deixava extasiado pela gama de cores e luzes e brilhos perpassando o seu corpo e tudo que podia tocar. Os peixes encostavam nos meus calcanhares e eu não me importava. A mordida deles me fazia cócegas e era bom. O vento na orla tinha um carinho ao tocar no rosto que nenhum outro canto da ilha tinha. Acho que depois de passar por tantas árvores, rochedos e vegetações, ele chega velho, maduro, seco. O que vem diretamente do oceano é tão gentil. Tão delicado. Acho que ainda não perdeu a ingenuidade. Ao mesmo tempo, ficava pensando em como eu já era um dos obstáculos pelo qual ele iria passar, contribuindo para que os animais e as plantas não o sentissem da mesma maneira que eu estava sentindo. Com o tempo, parei de pensar nisso. Apenas pela manhã podia-se perceber outra coisa: caminhando até onde podia-se ir sem precisar nadar mar adentro, via-se o local exato onde o mar alcançava a profundidade oceânica. Uma linha preta demarcava o local exato. Ali ficava um dos locais mais fundos de todo aquele oceano. Adentrava ainda muitos metros e eu mesmo nunca tive coragem de ir até lá.
Eu era a ilha.
            Eu não tinha família. Acho que nunca tive. Parando para pensar e relembrar o passado, o último ponto que posso buscar na minha memória já é dentro da ilha. E sozinho. E em casa.
            Eu tinha uma casa.
            Não sei como foi construída, mas já estava lá desde que lembro. Era grande, tinha dois andares e era de uma arquitetura colonial. Eu sei disso porque era o que os livros me diziam. O maior compartimento da casa era uma biblioteca, com mais livros e letras e frases do que a minha cabeça jamais conseguiria suportar. Foi ali que eu aprendi a falar e, consequentemente, a ler. Acho que alguém me ensinou a falar, provavelmente. Mas não lembro. Eu gostava dali. Gastava quase todo o tempo que passava na casa naquela biblioteca, lendo todo tipo de literatura. Havia fileiras e mais fileiras de quartos vazios. Não me interessava. Eram estéreis e dramáticos. Portas que davam em portas, que davam em portas. Tinha uma coloração branca com verde, a casa, e da cozinha dava para ver um conjunto de portas abertas em sequência, cada uma dando para um pedaço de corredor. Isso formava uma experiência visual que era uma das minhas preferidas daquele ambiente. Fora isso, quase todo o meu dia era do lado de fora.
            A parte de dentro da ilha era abafada e tinha um cheiro de molhado e vegetação. Eu corria descalço na areia fofa e subia os morros íngremes até alcançar as cachoeiras e me banhava nelas. Tudo era meu. Das fontes térmicas, próximas ao litoral leste, à estátua da vênus de Milo (na verdade, só parecia) no promontório, ao sudoeste. A solidão não fazia diferença. Era só eu e a ilha.
            Eu era a ilha.
Deu que um dia, eu tinha por volta dos quinze anos, acordei dum sono vespertino com um barulho muito alto, vindo de algum lugar muito longe no horizonte. Era como se a Terra estivesse gritando com todos os seus pulmões. Levantei. Estava no promontório: Um penhasco de uns muitos metros, com uma queda preenchida por pedras pontiagudas, acinzentadas, e que davam um tom melancólico à ilha. Era o ponto mais alto, pois se inclinava como um monte. Um monte na praia. Erguia-se, estreito, feito de pedra. Um pontal, como uma ponte não concluída, esticada feito a lança de um cavaleiro. O chão tremia. Corri até o final, tentando ver o que quer que tinha provocado tudo aquilo. Nada. O horizonte permanecia intacto e calmo como sempre. Dei as costas. Estava começando a ter fome e era melhor caçar durante o dia, antes do anoitecer. O barulho veio novamente. Retumbou como um trovão, mas muito mais longo e profundo. Parecia vir e entrar como um martelo, ressoando e fazendo estremecer tudo dentro de mim. Voltei a olhar para o horizonte. Uma mancha negra vinha de algum lugar. Na verdade, parecia se formar ali mesmo. Uma massa de nuvens, acinzentando-se cada vez mais. Pássaros e mais pássaros vinham para a ilha. Pareciam assustados. Alguns pousaram onde eu estava, formando uma manta negra que recobria todo o chão. Foi quando a água começou a tremer. Ondas enormes chocavam-se com a ilha e explodiam nas rochas. Vinham exatamente da parte mais distante de onde a minha vista podia alcançar. A mancha preta, onde o oceano era mais profundo. Os livros diziam que ali viviam todo tipo de criatura, o que me fez sentir medo. Durante todo o tempo que estive ali, nada parecido havia acontecido. Sabia o que eram terremotos. Erupções vulcânicas, guerras nucleares, apocalipses. Mas não podia controlar meu medo.
Alguma coisa surgiu.
Do ponto mais distante do horizonte, algo se ergueu. Inicialmente, parecia ser só mais uma onda, ou onde as ondas enormes que se chocavam na praia se formavam, mas quanto mais crescia, mais a sua forma ia se diferenciando. Enquanto as ondas quebravam normalmente depois de uma certa altura, aquele amontoado de água seguia crescendo, e ficava cada vez menos coberto por ela. Devia ter um quilômetro de extensão. Não. Talvez mais que isso. Como podia? Elevou-se mais e mais. A água escorreu e um amontoado de alguma coisa se mostrou. Parecia uma vegetação. Como se uma nova ilha estivesse brotando debaixo da água e erguendo-se num passe de mágica. Era impossível. Ilhas não surgem assim. Leva-se anos, talvez séculos. Era um monte de mata branca, com folhas longas e compridas, que recobriam todo o espaço da coisa. E continuava erguendo-se. Estava alta demais. Não havia encosta, rochedos, só uma grande mata branca erguendo-se indefinidamente.
Foi quando eu vi um nariz.
O resto foi muito rápido. Um rosto gigantesco surgiu debaixo da água. Realmente tinha quilômetros de extensão. Só o rosto. Era branco azulado, e só se via os olhos de um vermelho flamejante e a parte de cima das bochechas. Todo o resto era preenchido por cabelos brancos, com uma barba que lhe cobria toda a face e ainda com grande parte submersa. Seu tronco foi surgindo, primeiro o pescoço, depois os ombros, braços, peitoral, barriga. Erguia-se com os braços gigantescos, apoiando-se na baía, como se fosse as bordas de uma piscina. Fixou seus olhos em mim e rugiu. Abriu a boca com enormes dentes afiados e não pareceu fazer esforço algum para gritar, mas o som fez a ilha tremer. Olhei cada detalhe de seu rosto e, num lampejo perceptivo, tardei a crer que uma passagem bíblica me viera à cabeça:
Apocalipse 1:14-16: “E a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os seus olhos como chama de fogo; e os seus pés, semelhantes a latão reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha, e a sua voz como a voz de muitas águas. E ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandece.”
Era Deus. Dostoievski me enganara. Mas estava furioso. Oh meu deus, era Deus em pessoa, e estava furioso. Fiquei parado. Minha cabeça não conseguia formar pensamentos. Toda uma gama de palavras trovoavam num turbilhão de ideias que não faziam nenhum sentido. Meu corpo estava em alerta de perigo. Quando isso acontece, nada faz sentido. Tudo é ação e a minha ação foi não agir. Não havia como agir. Eu não fazia a mínima ideia do que iria acontecer, mas estava petrificado com aquela figura majestosa que avançava na direção da ilha, movendo ondas tão grandes que quase alcançavam o local em que eu estava.
Por que aquilo? Por que daquele jeito? Seu olhar punitivo queimava a minha pele. Ele trazia a cólera e eu não conseguia entender. Por que eu? Por que tanta raiva? Deus avançava mecanicamente, alcançando a parte rasa da praia, onde os peixes mordiam meus pés. Sua boca abriu-se lentamente, mostrando um buraco tão grande e tão profundo... Era abismal e de lá saíam criaturas rastejantes que não sei descrever. Pareciam vermes, mas tomando a minha proporção diminuta, seriam maiores que as maiores das serpentes. Abaixou o rosto e continuou se aproximando, ajoelhando-se e encostando o queixo na areia.
Ia engolir a ilha!
Seus dentes arrastaram-se na areia e formavam sulcos do tamanho de lagos. Seu rosto colava-se cada vez mais com o local onde eu estava. Era o ponto mais alto. Ele olhava para mim enquanto fazia aquilo. Cristo, seus olhos de fogo me encaravam. O chão tremia. A formação rochosa parecia que iria desabar antes mesmo da divindade chegar. Saltei do penhasco. Saltei para a minha morte. Senti a falta de terra firme por baixo dos meus pés e me esperneei no ar, balançando meus braços e pernas o quanto pude. Acabei chocando-me com a enorme cabeleira branca e segurei-me com todas as minhas forças. Parece ridículo dizer isso diante de Deus, mas era a minha vida que estava em jogo. Usei tudo que tinha para subir para o topo de Deus e esperar. Esperar que aquilo tudo terminasse. Esperar que aquela punição fosse concluída. Mas lembrei da ilha. Lembrei dos arrecifes, das cachoeiras. Do vento gentil e delicado da orla. Lembrei da casa. Das portas que davam em portas. Lembrei de tudo e chorei. Chorei enquanto vi tudo que me pertencia ser devorado em apenas alguns minutos por um Deus furioso e faminto. Nada podia ser feito. A ilha fora engolida. Cheguei ao topo da cabeça de Deus, justamente a tempo d’Ele se erguer e de conseguir ver o abismo formado pelo vazio do espaço sem a ilha. Uma depressão circular rodeada por enormes cascatas tomava o lugar do meu lar. Meu antigo lar.
Senti minha cabeça doer e uma voz ressoou dentro dela, dizendo algo que eu não consegui entender ou mesmo traduzir para um dialeto entendível. “Deus age de formas misteriosas”.  Ele devorara meu lar. Devorara minha família. Uma dor que nunca tinha sentido perpassou meu ser. Acho que era tristeza.
Voltou a afundar no abismo negro do oceano e quando submergiu por completo, deixei-me soltar e boiei no imenso mar azul, repleto de água em toda as direções do horizonte. Naquele momento, minhas lágrimas se confundiram com a água do mar. Não sentia sede, muito menos fome. Um cansaço me preenchia, mas em nenhum momento parecia que eu iria parar de nadar por falta de força. Não entendi uma única palavra que Deus disse para mim, mas passei a minha vida inteira acompanhado dos livros. Tempo suficiente para perceber que eu não era mais mortal.
Êxodo 33:20: "Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá." Como seres humanos pecadores, somos incapazes de ver Deus em toda a Sua glória. Sua aparência é totalmente inimaginável e muito gloriosa para ser seguramente percebida pelo homem pecador”.
Eu não era mais humano. Quem sabe, eu nunca tivesse sido humano. Será que os mitos gregos se perguntavam isso? Será que Sísifo sabia? Ou quem sabe Atlas? Ou Prometeu? Acho que eu me tornara o mais novo Prometeu. O Atlas pós-moderno, um pedaço de massa. A última coisa que restava da ilha era eu.
Eu também era a ilha.
Era um mito. Um mito feito de carne, sangue, ossos, ódio e memórias. Memórias de terra firme. Memórias da ilha. Da minha ilha. De mim.
Ilha: s.f. Extensão de terra cercada de água por todos os lados.








terça-feira, 7 de janeiro de 2014


Sinto a piada me consumir por dentro. Uma piada que só eu rio, torto e esquisito, diante de feições sérias
e decepcionadas. Meu ato foi desaprovado, meus acompanhantes sumiram. O pior de tudo é perceber que o que
faz e fará falta será apenas a minha própria auto satisfação. Sempre. Caminho numa avenida escura, sei lá
que horas da noite. Esses pensamentos fervilhavam, mais do que o barulho dos automóveis ou do asfalto
quente que pisava e atravessava a sola do meu sapato. O céu pendia morto e sem estrelas, num opaco
deprimente e penoso. O neon nos edifícios debochava disso. Tentei imaginar quantas cenas doentias estavam
acontecendo exatamente naquele momento. Quantas pessoas não estariam sendo assassinadas? Estupradas?
Pedófilos, psicopatas, um bando de psico não sei das quantas trancados entre quatro paredes, salvaguardados
de qualquer julgamento moral, praticando uma infinidade de atrocidades inimagináveis enquanto posso
caminhar sossegado nessa cidade fedorenta, lamentando os meus problemas idiotas, me autolambuzando nessa
masturbação mental cíclica. Paro numa esquina. Sem placas com nomes de rua. Um beco à esquerda. Sem luz
nenhuma. Entro. Aquele era um daqueles momentos em que você acha que tem motivo para querer foder com
tudo e com todo o universo e te faz querer consumir o alimento mais podre e com mais cara de lixo disponível.
Sim. A rua estava vazia, repleta de sacos de lixo, rasgados por alguns animais ou por gente. Tanto faz.
Cheguei ao fim, marcado por um muro de tijolo exposto. Não tinha ninguém me olhando. Ninguém para ver o quão
ousado eu estava sendo. Porra, que diabos eu fazia ali? Parecia uma criança que bate o pé e força choro para
ganhar atenção. Sentei, recostado ao muro, pensando na idiotice que era aquilo tudo e do quão patética era
a pena que sentia de mim mesmo. Clamei por um Deus Ex Machina, sentado em uma poça de - queira deus que seja -
lama e sem a porra dum isqueiro pra acender um cigarro. O álcool perdera o efeito. Tudo se tornava ainda mais
idiota. Minhas sensações corporais me pareciam mais claras, Meu sofrimento também. A inutilidade dos meus
pensamentos e a minha passividade diante deles me fez rir, e o riso me levou à tosse. Engasguei-me. Perdi um
pouco de fôlego. Tentei levantar para voltar para casa. O caminho estava mais deserto do que antes. Os carros
diminuiram de número, resumindo-se a pouco mais de um ou dois passantes num intervalo de um minuto. Quando
prostrei-me para fora do beco, uma luz impactante veio de algum lugar do céu, como um holofote que foca um
cantor em um palco. Vinha numa verticalidade tão grande que era difícil supor de onde saía e não se via
aviões ou helicópteros. O clarão, de tanta intensidade, despertou os dormentes, todos aqueles que não se
importavam mais com nada. Em pouco mais de alguns minutos, uma multidão observava comigo aquela anormalidade.
Era perfeitamente branca, num ângulo reto igualmente perfeito. Emanava um som selestial que ecoava na minha
cabeça assustadoramente. Um círculo formava o contato da luz com o asfalto. Um cerco luminoso que cabia apenas
uma pessoa e olhe lá. Por quais motivos não sei, mas dei um passo a frente, depois outro e outro, e decidi
caminhar para o foco da luz antes que outro o fizesse. A multidão observou impassível. O brilho envolveu meu
corpo de forma acalentadora. Não sei porquê, mas pensei novamente em tudo que me angustiava e então notei que
ali estava o super homem. A contravenção. O Deus Ex Machina que acabara de pedir. Engraçado, não? Até nos
momentos mais triste, a vida consegue fazer uma piada. A luz me ergueu no ar, me fazendo flutuar, enquanto
eu via brotar do chão criaturas que não consigo aqui descrever. Assassinas. Estupradoras de estupradores e
de não estupradores. Cobras, macacos, morcegos. Insetos grotescos e famintos. Uma nuvem de monstruosidade
saía do asfalto, esgotos e concretos, matando, destruindo, degolando. A luz me fez subir mais. Vi o planeta
de uma visão privilegiada. Uma onda de vermelho preencheu o globo, tingindo de escarlate os oceanos. Observei
tudo isso sem poder fazer nada.

O Riso


O riso não tinha clemência. A boca tremia, a língua vacilava, a voz emudecia. Mas o riso trincava a bochecha.
E era feio. Não apenas feio. Era doentio. Seco, cru, como se alguma coisa estivesse gravemente errada. Não
sei exatamente o momento que pude notá-lo, mas sei que a sombra pairava ao eu lado, assim como estranhas trombetas,
em uníssono, cantavam uma marcha fúnebre. O riso não tinha face. Não havia dentes. Na verdade, nem mesmo sei se
havia boca. Era como se nada daquilo fosse verdade. Você olha para os lados, procurando as câmeras escondidas, o
apresentador de tevê esperando a deixa para entrar. Não há. As vitrines o escondem. O riso não há. Olhava. Olhei.
Era coisa da minha cabeça? Tudo é coisa da cabeça, mas uma coisa eu sei: o riso era maior que ela. O riso rasgava
a carne, alcançando as orelhas. Os lábios eram grandes e pequenos. A abertura, um canal vaginal. Nada ali lembrava
realmente uma boca. Um sorriso. Aquela figura alta, esguia, nada significava. Era horrível. Horrível! Corri o mais
rápido que pude, esbarrando nas pessoas, que me respondiam com xingamentos ao longe. Gritos atormentados me furavam
os tímpanos. Calafrios percorriam o meu corpo. Mas nada disso se comparava ao sorriso. Ao maldito riso. Não havia
rua. Não havia pessoas, nem luz do sol. Nem mesmo havia o riso. Diabos, nem mesmo havia eu. Só restava o riso.
Acho que eu nem existia mais.
E de repente do riso fez-se o pranto...