quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Um Mito




Mito: s.m. Narrativa popular ou literária, que coloca em cena seres sobre-humanos e ações imaginárias, para as quais se faz a transposição de acontecimentos históricos, reais ou fantasiosos (desejados), ou nas quais se projetam determinados complexos individuais ou determinadas estruturas subjacentes das relações familiares.
Desde que me entendo por gente, tinha para mim uma ilha. Ficava em algum lugar entre o atlântico e o pacífico, rodeada por um mar de um azul incrivelmente cristalino, de forma que, pela manhã, podia-se andar vários metros mar adentro, com uma água que não chegava nem mesmo perto dos joelhos, vendo toda a movimentação marinha e o nado maravilhoso dos pequenos peixes, e de noite, um fenômeno que não sei explicar fazia a água brilhar, de forma que caminhar por aquelas bandas te deixava extasiado pela gama de cores e luzes e brilhos perpassando o seu corpo e tudo que podia tocar. Os peixes encostavam nos meus calcanhares e eu não me importava. A mordida deles me fazia cócegas e era bom. O vento na orla tinha um carinho ao tocar no rosto que nenhum outro canto da ilha tinha. Acho que depois de passar por tantas árvores, rochedos e vegetações, ele chega velho, maduro, seco. O que vem diretamente do oceano é tão gentil. Tão delicado. Acho que ainda não perdeu a ingenuidade. Ao mesmo tempo, ficava pensando em como eu já era um dos obstáculos pelo qual ele iria passar, contribuindo para que os animais e as plantas não o sentissem da mesma maneira que eu estava sentindo. Com o tempo, parei de pensar nisso. Apenas pela manhã podia-se perceber outra coisa: caminhando até onde podia-se ir sem precisar nadar mar adentro, via-se o local exato onde o mar alcançava a profundidade oceânica. Uma linha preta demarcava o local exato. Ali ficava um dos locais mais fundos de todo aquele oceano. Adentrava ainda muitos metros e eu mesmo nunca tive coragem de ir até lá.
Eu era a ilha.
            Eu não tinha família. Acho que nunca tive. Parando para pensar e relembrar o passado, o último ponto que posso buscar na minha memória já é dentro da ilha. E sozinho. E em casa.
            Eu tinha uma casa.
            Não sei como foi construída, mas já estava lá desde que lembro. Era grande, tinha dois andares e era de uma arquitetura colonial. Eu sei disso porque era o que os livros me diziam. O maior compartimento da casa era uma biblioteca, com mais livros e letras e frases do que a minha cabeça jamais conseguiria suportar. Foi ali que eu aprendi a falar e, consequentemente, a ler. Acho que alguém me ensinou a falar, provavelmente. Mas não lembro. Eu gostava dali. Gastava quase todo o tempo que passava na casa naquela biblioteca, lendo todo tipo de literatura. Havia fileiras e mais fileiras de quartos vazios. Não me interessava. Eram estéreis e dramáticos. Portas que davam em portas, que davam em portas. Tinha uma coloração branca com verde, a casa, e da cozinha dava para ver um conjunto de portas abertas em sequência, cada uma dando para um pedaço de corredor. Isso formava uma experiência visual que era uma das minhas preferidas daquele ambiente. Fora isso, quase todo o meu dia era do lado de fora.
            A parte de dentro da ilha era abafada e tinha um cheiro de molhado e vegetação. Eu corria descalço na areia fofa e subia os morros íngremes até alcançar as cachoeiras e me banhava nelas. Tudo era meu. Das fontes térmicas, próximas ao litoral leste, à estátua da vênus de Milo (na verdade, só parecia) no promontório, ao sudoeste. A solidão não fazia diferença. Era só eu e a ilha.
            Eu era a ilha.
Deu que um dia, eu tinha por volta dos quinze anos, acordei dum sono vespertino com um barulho muito alto, vindo de algum lugar muito longe no horizonte. Era como se a Terra estivesse gritando com todos os seus pulmões. Levantei. Estava no promontório: Um penhasco de uns muitos metros, com uma queda preenchida por pedras pontiagudas, acinzentadas, e que davam um tom melancólico à ilha. Era o ponto mais alto, pois se inclinava como um monte. Um monte na praia. Erguia-se, estreito, feito de pedra. Um pontal, como uma ponte não concluída, esticada feito a lança de um cavaleiro. O chão tremia. Corri até o final, tentando ver o que quer que tinha provocado tudo aquilo. Nada. O horizonte permanecia intacto e calmo como sempre. Dei as costas. Estava começando a ter fome e era melhor caçar durante o dia, antes do anoitecer. O barulho veio novamente. Retumbou como um trovão, mas muito mais longo e profundo. Parecia vir e entrar como um martelo, ressoando e fazendo estremecer tudo dentro de mim. Voltei a olhar para o horizonte. Uma mancha negra vinha de algum lugar. Na verdade, parecia se formar ali mesmo. Uma massa de nuvens, acinzentando-se cada vez mais. Pássaros e mais pássaros vinham para a ilha. Pareciam assustados. Alguns pousaram onde eu estava, formando uma manta negra que recobria todo o chão. Foi quando a água começou a tremer. Ondas enormes chocavam-se com a ilha e explodiam nas rochas. Vinham exatamente da parte mais distante de onde a minha vista podia alcançar. A mancha preta, onde o oceano era mais profundo. Os livros diziam que ali viviam todo tipo de criatura, o que me fez sentir medo. Durante todo o tempo que estive ali, nada parecido havia acontecido. Sabia o que eram terremotos. Erupções vulcânicas, guerras nucleares, apocalipses. Mas não podia controlar meu medo.
Alguma coisa surgiu.
Do ponto mais distante do horizonte, algo se ergueu. Inicialmente, parecia ser só mais uma onda, ou onde as ondas enormes que se chocavam na praia se formavam, mas quanto mais crescia, mais a sua forma ia se diferenciando. Enquanto as ondas quebravam normalmente depois de uma certa altura, aquele amontoado de água seguia crescendo, e ficava cada vez menos coberto por ela. Devia ter um quilômetro de extensão. Não. Talvez mais que isso. Como podia? Elevou-se mais e mais. A água escorreu e um amontoado de alguma coisa se mostrou. Parecia uma vegetação. Como se uma nova ilha estivesse brotando debaixo da água e erguendo-se num passe de mágica. Era impossível. Ilhas não surgem assim. Leva-se anos, talvez séculos. Era um monte de mata branca, com folhas longas e compridas, que recobriam todo o espaço da coisa. E continuava erguendo-se. Estava alta demais. Não havia encosta, rochedos, só uma grande mata branca erguendo-se indefinidamente.
Foi quando eu vi um nariz.
O resto foi muito rápido. Um rosto gigantesco surgiu debaixo da água. Realmente tinha quilômetros de extensão. Só o rosto. Era branco azulado, e só se via os olhos de um vermelho flamejante e a parte de cima das bochechas. Todo o resto era preenchido por cabelos brancos, com uma barba que lhe cobria toda a face e ainda com grande parte submersa. Seu tronco foi surgindo, primeiro o pescoço, depois os ombros, braços, peitoral, barriga. Erguia-se com os braços gigantescos, apoiando-se na baía, como se fosse as bordas de uma piscina. Fixou seus olhos em mim e rugiu. Abriu a boca com enormes dentes afiados e não pareceu fazer esforço algum para gritar, mas o som fez a ilha tremer. Olhei cada detalhe de seu rosto e, num lampejo perceptivo, tardei a crer que uma passagem bíblica me viera à cabeça:
Apocalipse 1:14-16: “E a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os seus olhos como chama de fogo; e os seus pés, semelhantes a latão reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha, e a sua voz como a voz de muitas águas. E ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandece.”
Era Deus. Dostoievski me enganara. Mas estava furioso. Oh meu deus, era Deus em pessoa, e estava furioso. Fiquei parado. Minha cabeça não conseguia formar pensamentos. Toda uma gama de palavras trovoavam num turbilhão de ideias que não faziam nenhum sentido. Meu corpo estava em alerta de perigo. Quando isso acontece, nada faz sentido. Tudo é ação e a minha ação foi não agir. Não havia como agir. Eu não fazia a mínima ideia do que iria acontecer, mas estava petrificado com aquela figura majestosa que avançava na direção da ilha, movendo ondas tão grandes que quase alcançavam o local em que eu estava.
Por que aquilo? Por que daquele jeito? Seu olhar punitivo queimava a minha pele. Ele trazia a cólera e eu não conseguia entender. Por que eu? Por que tanta raiva? Deus avançava mecanicamente, alcançando a parte rasa da praia, onde os peixes mordiam meus pés. Sua boca abriu-se lentamente, mostrando um buraco tão grande e tão profundo... Era abismal e de lá saíam criaturas rastejantes que não sei descrever. Pareciam vermes, mas tomando a minha proporção diminuta, seriam maiores que as maiores das serpentes. Abaixou o rosto e continuou se aproximando, ajoelhando-se e encostando o queixo na areia.
Ia engolir a ilha!
Seus dentes arrastaram-se na areia e formavam sulcos do tamanho de lagos. Seu rosto colava-se cada vez mais com o local onde eu estava. Era o ponto mais alto. Ele olhava para mim enquanto fazia aquilo. Cristo, seus olhos de fogo me encaravam. O chão tremia. A formação rochosa parecia que iria desabar antes mesmo da divindade chegar. Saltei do penhasco. Saltei para a minha morte. Senti a falta de terra firme por baixo dos meus pés e me esperneei no ar, balançando meus braços e pernas o quanto pude. Acabei chocando-me com a enorme cabeleira branca e segurei-me com todas as minhas forças. Parece ridículo dizer isso diante de Deus, mas era a minha vida que estava em jogo. Usei tudo que tinha para subir para o topo de Deus e esperar. Esperar que aquilo tudo terminasse. Esperar que aquela punição fosse concluída. Mas lembrei da ilha. Lembrei dos arrecifes, das cachoeiras. Do vento gentil e delicado da orla. Lembrei da casa. Das portas que davam em portas. Lembrei de tudo e chorei. Chorei enquanto vi tudo que me pertencia ser devorado em apenas alguns minutos por um Deus furioso e faminto. Nada podia ser feito. A ilha fora engolida. Cheguei ao topo da cabeça de Deus, justamente a tempo d’Ele se erguer e de conseguir ver o abismo formado pelo vazio do espaço sem a ilha. Uma depressão circular rodeada por enormes cascatas tomava o lugar do meu lar. Meu antigo lar.
Senti minha cabeça doer e uma voz ressoou dentro dela, dizendo algo que eu não consegui entender ou mesmo traduzir para um dialeto entendível. “Deus age de formas misteriosas”.  Ele devorara meu lar. Devorara minha família. Uma dor que nunca tinha sentido perpassou meu ser. Acho que era tristeza.
Voltou a afundar no abismo negro do oceano e quando submergiu por completo, deixei-me soltar e boiei no imenso mar azul, repleto de água em toda as direções do horizonte. Naquele momento, minhas lágrimas se confundiram com a água do mar. Não sentia sede, muito menos fome. Um cansaço me preenchia, mas em nenhum momento parecia que eu iria parar de nadar por falta de força. Não entendi uma única palavra que Deus disse para mim, mas passei a minha vida inteira acompanhado dos livros. Tempo suficiente para perceber que eu não era mais mortal.
Êxodo 33:20: "Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá." Como seres humanos pecadores, somos incapazes de ver Deus em toda a Sua glória. Sua aparência é totalmente inimaginável e muito gloriosa para ser seguramente percebida pelo homem pecador”.
Eu não era mais humano. Quem sabe, eu nunca tivesse sido humano. Será que os mitos gregos se perguntavam isso? Será que Sísifo sabia? Ou quem sabe Atlas? Ou Prometeu? Acho que eu me tornara o mais novo Prometeu. O Atlas pós-moderno, um pedaço de massa. A última coisa que restava da ilha era eu.
Eu também era a ilha.
Era um mito. Um mito feito de carne, sangue, ossos, ódio e memórias. Memórias de terra firme. Memórias da ilha. Da minha ilha. De mim.
Ilha: s.f. Extensão de terra cercada de água por todos os lados.








terça-feira, 7 de janeiro de 2014


Sinto a piada me consumir por dentro. Uma piada que só eu rio, torto e esquisito, diante de feições sérias
e decepcionadas. Meu ato foi desaprovado, meus acompanhantes sumiram. O pior de tudo é perceber que o que
faz e fará falta será apenas a minha própria auto satisfação. Sempre. Caminho numa avenida escura, sei lá
que horas da noite. Esses pensamentos fervilhavam, mais do que o barulho dos automóveis ou do asfalto
quente que pisava e atravessava a sola do meu sapato. O céu pendia morto e sem estrelas, num opaco
deprimente e penoso. O neon nos edifícios debochava disso. Tentei imaginar quantas cenas doentias estavam
acontecendo exatamente naquele momento. Quantas pessoas não estariam sendo assassinadas? Estupradas?
Pedófilos, psicopatas, um bando de psico não sei das quantas trancados entre quatro paredes, salvaguardados
de qualquer julgamento moral, praticando uma infinidade de atrocidades inimagináveis enquanto posso
caminhar sossegado nessa cidade fedorenta, lamentando os meus problemas idiotas, me autolambuzando nessa
masturbação mental cíclica. Paro numa esquina. Sem placas com nomes de rua. Um beco à esquerda. Sem luz
nenhuma. Entro. Aquele era um daqueles momentos em que você acha que tem motivo para querer foder com
tudo e com todo o universo e te faz querer consumir o alimento mais podre e com mais cara de lixo disponível.
Sim. A rua estava vazia, repleta de sacos de lixo, rasgados por alguns animais ou por gente. Tanto faz.
Cheguei ao fim, marcado por um muro de tijolo exposto. Não tinha ninguém me olhando. Ninguém para ver o quão
ousado eu estava sendo. Porra, que diabos eu fazia ali? Parecia uma criança que bate o pé e força choro para
ganhar atenção. Sentei, recostado ao muro, pensando na idiotice que era aquilo tudo e do quão patética era
a pena que sentia de mim mesmo. Clamei por um Deus Ex Machina, sentado em uma poça de - queira deus que seja -
lama e sem a porra dum isqueiro pra acender um cigarro. O álcool perdera o efeito. Tudo se tornava ainda mais
idiota. Minhas sensações corporais me pareciam mais claras, Meu sofrimento também. A inutilidade dos meus
pensamentos e a minha passividade diante deles me fez rir, e o riso me levou à tosse. Engasguei-me. Perdi um
pouco de fôlego. Tentei levantar para voltar para casa. O caminho estava mais deserto do que antes. Os carros
diminuiram de número, resumindo-se a pouco mais de um ou dois passantes num intervalo de um minuto. Quando
prostrei-me para fora do beco, uma luz impactante veio de algum lugar do céu, como um holofote que foca um
cantor em um palco. Vinha numa verticalidade tão grande que era difícil supor de onde saía e não se via
aviões ou helicópteros. O clarão, de tanta intensidade, despertou os dormentes, todos aqueles que não se
importavam mais com nada. Em pouco mais de alguns minutos, uma multidão observava comigo aquela anormalidade.
Era perfeitamente branca, num ângulo reto igualmente perfeito. Emanava um som selestial que ecoava na minha
cabeça assustadoramente. Um círculo formava o contato da luz com o asfalto. Um cerco luminoso que cabia apenas
uma pessoa e olhe lá. Por quais motivos não sei, mas dei um passo a frente, depois outro e outro, e decidi
caminhar para o foco da luz antes que outro o fizesse. A multidão observou impassível. O brilho envolveu meu
corpo de forma acalentadora. Não sei porquê, mas pensei novamente em tudo que me angustiava e então notei que
ali estava o super homem. A contravenção. O Deus Ex Machina que acabara de pedir. Engraçado, não? Até nos
momentos mais triste, a vida consegue fazer uma piada. A luz me ergueu no ar, me fazendo flutuar, enquanto
eu via brotar do chão criaturas que não consigo aqui descrever. Assassinas. Estupradoras de estupradores e
de não estupradores. Cobras, macacos, morcegos. Insetos grotescos e famintos. Uma nuvem de monstruosidade
saía do asfalto, esgotos e concretos, matando, destruindo, degolando. A luz me fez subir mais. Vi o planeta
de uma visão privilegiada. Uma onda de vermelho preencheu o globo, tingindo de escarlate os oceanos. Observei
tudo isso sem poder fazer nada.

O Riso


O riso não tinha clemência. A boca tremia, a língua vacilava, a voz emudecia. Mas o riso trincava a bochecha.
E era feio. Não apenas feio. Era doentio. Seco, cru, como se alguma coisa estivesse gravemente errada. Não
sei exatamente o momento que pude notá-lo, mas sei que a sombra pairava ao eu lado, assim como estranhas trombetas,
em uníssono, cantavam uma marcha fúnebre. O riso não tinha face. Não havia dentes. Na verdade, nem mesmo sei se
havia boca. Era como se nada daquilo fosse verdade. Você olha para os lados, procurando as câmeras escondidas, o
apresentador de tevê esperando a deixa para entrar. Não há. As vitrines o escondem. O riso não há. Olhava. Olhei.
Era coisa da minha cabeça? Tudo é coisa da cabeça, mas uma coisa eu sei: o riso era maior que ela. O riso rasgava
a carne, alcançando as orelhas. Os lábios eram grandes e pequenos. A abertura, um canal vaginal. Nada ali lembrava
realmente uma boca. Um sorriso. Aquela figura alta, esguia, nada significava. Era horrível. Horrível! Corri o mais
rápido que pude, esbarrando nas pessoas, que me respondiam com xingamentos ao longe. Gritos atormentados me furavam
os tímpanos. Calafrios percorriam o meu corpo. Mas nada disso se comparava ao sorriso. Ao maldito riso. Não havia
rua. Não havia pessoas, nem luz do sol. Nem mesmo havia o riso. Diabos, nem mesmo havia eu. Só restava o riso.
Acho que eu nem existia mais.
E de repente do riso fez-se o pranto...