terça-feira, 2 de agosto de 2011

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 De algum jeito, de alguma forma, a escuridão pareceu tomar conta de mim. Perambulei ruas e esquinas, suspirei palavras, olhei o que não devia.
                Com o tempo não havia mais tempo.
                Com a noite não havia mais noite.
                Com o lábio, não mais bebida.
                Com a neblina, não mais esperança.
                Não sei ao certo as coisas que me aconteceram. Num período de uma semana parecia estar andando como se meus pés se guiassem sozinhos. Não lembro, não lembro, não lembro. Só sinto o nojo das coisas que desconheço e o medo de seus fantasmas me assombrando a noite. Um CD triste, tocando canções melancólicas com acordes doentios. Um cheiro esquisito que me dava náusea. Estava sempre em vários lugares ao mesmo tempo, mas nunca verdadeiramente em algum lugar. Respirar estava se tornando corrosivo.
                Levantei da cama. Um passo de cada vez, é o que dizem. Corram todos, foi o que pensei.
                Tinha um cadáver embaixo da minha cama.
                Não acreditei quando vi. Estava apenas com uma mão para o lado de fora, como num último e agonizante pedido de misericórdia. Respirei fundo, agachei-me e puxei o corpo que ali se encontrava. Era uma mulher, aparentemente com uns vinte anos, cabelos pretos, pele clara, minha altura. Estava com os olhos abertos e um pano que lhe cobria o rosto, amarrado na nuca, e que ia até o pescoço. Fora deixada pelo incerto, completamente nua e sob a minha cama. Estava muito magra, como uma dependente química. Pernas finas, vagina cabeluda. Inseri um dedo ali. Não havia sinal de lubrificação. Óbvio.
                Verifiquei a casa: todos dormindo. Parecia que era noite. Por que estava dormindo e acordado de noite, não faço idéia.
                Não costumo ter sono inconstante.
                Não costumo ter pesadelos.
                O corpo estava extremamente frio. Pus a mão em seu pulso para verificar se estava realmente morta – idiotice, não fazia a mínima idéia de como se fazia – não senti nada, nenhum sinal de existência, nem um mínimo suspiro de vitalidade. Os olhos sem brilho pareciam os meus. Desviei o olhar. Pensar nisso era incômodo.
                Tentei pensar no que fazer, tentei pensar em avisar meus pais, ou ligar para a polícia, ou quem quer que valha. Livrar-me daquele corpo e ser feliz para sempre. Esquecer qualquer problema e respirar tranquilamente enquanto EU gargalho de MIM.
                Mas não podia.
                Não conseguia.
                E antes que percebesse, havia decepado sua perna até embaixo do joelho.
                Corri rapidamente. Procurei o maior saco que poderia achar e coloquei-a dentro, empurrando o corpo novamente para debaixo da cama. A perna, que agora começava a jorrar sangue devagar, foi parar na pia do banheiro. Apertei-a da base do pé até o corte, tentando expulsar todo o sangue. A pia coloriu-se de vermelho tão rapidamente quanto o tempo passava. E eu lá. Eu estava lá. Era eu quem segurava a perna. Deuses, era eu quem sorria morbidamente com o toque da carne morta. Exatamente aquele cara que há alguns anos atrás corria descalço pelas ruas, brincando de viver e desejando apenas sua mãe.
                Eu, Eu, Eu.
                Sentei na privada pensando no que deveria fazer agora. Qual seria o limiar para que uma pessoa pudesse se matar? Havia limiar? Eu queria me matar? Não sei por que, mas mesmo tal garota já estando morta, senti como se a tivesse matado.
                E ao mesmo tempo, morrido por dentro.
                Olhei para o pedaço de carne frio e dessa vez vomitei. Vomitei uma pasta branca, parecida com aquela que se passa nos dentes. Tinha gosto de tristeza. Limpei com água, mas sabia que seria inútil. Alguns amargos jamais poderão ser tirados da boca.
                Enquanto pensava, bateram na porta do banheiro.
                Saltei da privada instantaneamente. Peguei a perna, andei para lá e para cá no banheiro como se pudesse fazer alguma coisa. Aquilo jamais desceria na privada.
                - Pois não? – perguntei.
                - Eu sou a Morte e você foi um menino mal. Agora precisamos conversar.
                Não tinha medo da morte. Não naquele momento. Sentia que o que eu havia feito já era heresia o bastante para rasgar os portões do inferno e conseguir um passaporte de pelo menos uns cinqüenta mil anos por lá. Mas não me importava.
                Mas ao abrir a porta, deparei-me com a figura de meu pai. Alto, majestoso, onipotente. Seu olhar para baixo me encarava os olhos. Sua expressão de raiva me consumia por dentro. Sua desaprovação seria pior que a morte. Ele não podia saber do corpo.
                Ele não podia saber da perna.
                - O que faz acordado essa hora? – perguntou Ele.
                - Nada, pai. Em poucos minutos estarei de volta a cama – respondi.
                - Pensa que está de férias? Pensa que eu estou de férias? Nós precisamos descansar, e você também.
                - Eu entendi, pai. Deixe-me só terminar o que estava a fazer que eu saio.
                - O que é isso que esconde nas costas?
                (Ele notara a perna)
                - Nada – dei um passo para trás.
                - Deixe-me ver! – bradou ele, avançando sobre mim. Pôs as mãos em meu ombro e virou-me com força. A visão da perna o fez recuar.
                - Meu Deus! É uma perna! – gritou o homem.
                O susto fez acordar minha mãe, que correu para ver o que havia de errado. Seu grito foi ainda maior.
                - Eu, eu posso explicar tudo! – tentava justificar – acalmem-se, pai e mãe! Se me deixarem explicar, vão entender que…
                - Minha Nossa Senhora! O que diabos você fez??? – gritava o pai a plenos pulmões. A mãe, encostada na parede, respirava ofegante, olhos arregalados.
                - Eu não fiz nada! Eu juro! Encontrei tudo desse jeito!
                Pela porta do meu quarto, uma poça de sangue começava a aparecer. O Pai correu e abriu a porta. O cheiro de coisa pútrida invadia todo o ar da casa. A mãe vomitou quando viu o chão do quarto inteiro tingido de vermelho. O Pai, forte e viril, correu para o cômodo, puxando o saco debaixo da cama. Como poderia ter apodrecido tão rápido? Era loucura! Todo o corpo da moça estava preto. Germes saiam de seus orifícios do rosto. Seu cabelo ainda bonito. Seus olhos brancos ainda encaravam. Sua vagina ainda seca.
                - Por Jesus Cristo! – gritou o Pai desesperado.
                - Eu não fiz nada, eu juro! Eu juro para você, meu Pai! Eu prometo que nunca mais farei besteira! Eu prometo que nunca mais irei pecar, ó Pai!
                - Você é louco! Um doente! Entendeu o que eu disse?? Você vai queimar no inferno, seu desgraçado!
                Ajoelhei-me ao chão. Foi uma cena linda. Ajoelhado na poça de sangue, com as mãos vermelhas, erguidas ao ar, ao teto do quarto, ao rosto de meu Pai. Sua face toda poderosa. Seu punho punitivo. Sua voz onipresente. Minha mãe, coitada, recostada contra a parede, com a mão no peito. Transpirava avidamente. Eu chorava como uma criança. Como a criança que eu era há anos atrás. Como a criança que eu ainda era. Chocava minhas mãos contra o chão. O sangue respingava sobre minha face, manchando o homem do crime. Eu era o homem do crime. Sabia disso. Mas mesmo assim, precisava do perdão do Pai. Mesmo que tivesse que negar quem eu era.
                - Por que, meu Pai? Por que está fazendo isso comigo? Por que me punes? Por que não me entendes? Por que, ó pai?
                Morri de desgosto de mim mesmo.

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