terça-feira, 2 de agosto de 2011

A Dama de Veneza



Ah, o romance. Sentimento este que dá razão a existência do homem. Ele gela os membros, acelera o coração e traz noites e mais noites de insônia. Qual homem resiste aos encantos de uma bela mulher? Venho aqui contar um fato ocorrido há mais ou menos dois anos. Talvez não lhe agrade este estranho evento, mas isso realmente não me importa. Trata-se de um romance, uma paixão ardente, mas não os quais você está acostumado, caro leitor.
Naquela época, encontrava-me muito jovem. Alto, forte, belo e abastado. Naquela época, todo o prazer carnal existente neste mundo me acompanhava. Claro, com poder, tem-se a vida que quiser.
Caminhava pelas ruas de Veneza, sentindo aquele vento agradável, ouvindo alegres canções. Dormia com uma mulher por noite, sem precisar saber os nomes. Raramente encontrava-me sóbrio ou sem a companhia de alguma donzela da nobreza.
Certa vez, vagando pelos bulevares escuros daquela cidade, deparei-me com a imagem de uma moça à entrada de um enorme cemitério. Estava de frente para mim, olhando para fora do grande portão de grades que nos separava. Ela então o abre, espera alguns segundos – como que pegando fôlego – e então adentra.
Sem tentar perguntar-me porque eu a segui naquele dia certamente não saberia responder. Só lembro-me vagamente do vento frio que emanava daquele local. Talvez por causa da minha ocupada vida de luxúria não tenha percebido que já estávamos no outono. As árvores estavam perdendo suas folhas. Suas cores eram apenas o laranja e o marrom. O chão estava coberto pelas folhas secas que esvoaçavam a cada brisa mais forte.
Segui a jovem por uma longa estrada dentro do cemitério. Lápides enormes pareciam nos seguir através do caminho. A maioria desgastada e coberta de fezes de pombos. Estávamos no crepúsculo.
Encontrava-me apenas a dois metros de distância da jovem, que com certeza se fazia ciente da minha presença. Nesse momento senti uma certa vergonha de ter feito o que fiz, mas agora era tarde para voltar. A curiosidade não me deixaria voltar.
Caminhamos até uma pequena elevação de terra, onde se podia ver quase todo o cemitério. Ao chegarmos, a moça parou e virou-se para mim. Tinha uma pele branca como a neve. Como a porcelana. Não havia áreas rosadas nas bochechas. Apenas aquela face perfeitamente branca, com exceção dos lábios vermelho-sangue. Sua cor entrava em contraste com seus longos cabelos pretos que iam até a cintura e com olhos que pareciam duas cavernas escuras. Estavam cheios de lágrimas. Um longo vestido cobria todo o seu corpo. Não havia roupas de baixo. Estava descalça.
Depois de alguns segundos encarando-a decidi dizer algo. Iria perguntar o que havia ocorrido para deixá-la às lágrimas. Porém, ao abrir minha boca para falar, ela disse:
- Por favor, não diga nada. Não percebe o que você está acabando de quebrar? – perguntou a dama sem tirar os olhos de mim – não nos conhecemos, nunca nos vimos, mas estamos presos por algo mais forte do que nós. Mais forte do que qualquer coisa. Não importam nossas vidas fora daqui. Somente o agora importa.
Foi naquele momento que eu me senti completamente preso a ela. Foi como se eu já a conhecesse há milhões de anos. Realmente, nada mais importava. Minha antiga vida parecia uma piada. Aquela face triste parecia me atrair de algum jeito. Não havia mais saída alguma para mim. Minha alma parecia pertencia àquela moça que transmitia toda aquela tristeza para o meu coração. Eu queria apenas dizê-la tudo que vinha à minha mente. Porém...
- Não diga nada, por favor Palavras são como facas. Elas só servem para ferir e machucar. Posso sentir tudo que quer dizer sem que digas nada. Se me amas tanto, aqui estou.
Aproximei-me. Todo o seu corpo cheirava à tristeza. Abracei-a com força. Éramos um só. Pele, cabelo e lábios misturados em perfeita sintonia. Seus olhos choravam enquanto nos beijávamos. Despimo-nos completamente. Agora éramos realmente um só. Enquanto nos amávamos pude sentir toda a sua tristeza. Parecia que havia alguma ligação entre nós.
Tudo estava ficando mais intenso. O sol já havia desaparecido há muito tempo. Uma enorme lua cheia começava a ganhar altura no céu escuro da noite. Quanto mais o vento frio crescia, mais o nosso sexo ganhava intensidade. Sua respiração ofegante sussurrava nomes desconhecidos para mim.
O auge chegou como um furacão. A jovem soltou um grito de prazer – pareceu-me algo alegre. Abraçávamos um ao outro com tanta força que podíamos sentir nossas unhas penetrando na carne de nossas costas nuas, fazendo o sangue escorrer. Porém, sentia-me cada vez mais triste. Cada vez mais fraco. Não podia explicar o que estava acontecendo, mas era algo estranho, que machucava a minha alma. Em contraste a mim, mademoiselle encontrava-se cada vez mais cheia de vida. Depois do suspiro final de prazer, continuamos abraçados por mais alguns minutos. Não sentia forças para sair dos braços dela. Entretanto, depois de um dia de repentina paixão por essa moça desconhecida, meu motivo para ficar inerte ali era outro. Estava realmente debilitado. Quem tomou a iniciativa foi ela.
Ao se levantar, pude ver seu rosto. Não era mais o mesmo. Havia ganhado cores e um sorriso – este magnífico, como os das belas senhoritas resplandecentes, amantes do dia e das belezas naturais, como os das moças que sorriem por tudo, como o das moças realmente felizes. Ela ajoelhou-se e beijou minha testa. Seus lábios não estavam mais gélidos como o gelo. Estavam quentes e vivos.
- Você salvou a minha vida. Encontrava-me fadada a um destino horrível, e graças ao seu amor, hoje posso ser livre e apreciar os campos e os prazeres novamente. Serei eternamente grata por isso, querido, mas temo dizer que nunca mais nos veremos. Muito obrigada, mas não tive escolha. Espero que encontre uma saída mais brevemente do que eu.
Vestiu-se e foi embora. Enquanto saía, observava seu corpo livre e sem fardos deslizar por sobre a relva amarelada. Meu coração estava vazio. Não existia energia para alimentar minha alma, esta aparentemente desaparecida, como em um vácuo, como em um vórtice, um buraco negro eterno onde estaria caindo e caindo em um cosmos sem fim. Coloquei-me a chorar, um choro de criança e soluçante, mas não de tristeza, pois até aquele sentimento havia sido roubado do meu corpo. Tardava a crer no que havia acontecido.
Noite após noite chorava. Noite após noite caminhava pelas extensões do cemitério, em busca do que eu não sabia. Jamais poderia sair dali. Uma atração me mantinha naquele local. Estava preso a ele. Poderia ir até a entrada, somente. Em alguns momentos sentia-me como um espectro inútil. Meu ser ali descansa até o fim dos dias, caro leitor. Ou até o momento em que alguma feliz donzela passe pela entrada daquele cemitério e queira sentir a minha tristeza. 

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