quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Incógnita

                
             Aos vinte e nove anos encontrei-me enterrando o único ser importante da minha vida. Era lua cheia e não havia uma única alma viva – excluindo a minha, ou talvez incluindo – em um raio de quilômetros. Encontrava-me mais ou menos na metade da rodovia interestadual. O céu estava negro, a brisa do vento fria e a terra molhada. Não estava chorando – perdi esse hábito. Nem mesmo remorso algum sentia. Aliás, nenhuma sensação humana era bem vinda em meu corpo há muito tempo.
            Olhei para o chão e pude ver o enorme buraco que havia cavado sozinho. Sem surpresas. Coloquei devagar o corpo de meu fiel companheiro e o observei por alguns minutos. Tentei dizer algo, mas saíram apenas chiados. Talvez uma ótima maneira de fazer-lhe vivo de novo seja lembrando os momentos de sua existência. Mas para poder falar sobre ele preciso voltar um pouco mais no tempo, antes mesmo de conhecê-lo.
            Aos dezenove anos, toda a minha antiga vida havia desmoronado. Não possuía mais amigo algum, muito menos emprego. Larguei os estudos e dediquei-me ao meu único prazer humano: escrever. A única coisa que dava razão para a minha existência. Escrevia sobre qualquer coisa: romances, tragédias, aventuras, terras ermas onde somente em nossos sonhos conseguimos alcançar. Mas eu não escrevia comercialmente. Apenas por puro prazer. Pouco tempo depois, minha única amiga e defensora, minha mãe, deixou essas terras. Meu pai era meu único parente vivo. Alguém que se importava apenas com a sua fábrica e com o lucro no fim do mês. Fazendo-se apenas dois dias da morte de minha criadora, parti sem rumo. Roubei a velha bicicleta de meu pai e vaguei em direção ao norte, sem dinheiro, sem comida, nenhum conhecido, nada. Apenas eu e meu desejo de conhecer novas paisagens que me inspirassem a escrever mais, pois escrevendo eu posso sair desse mundo, mesmo que apenas por um instante.
            Pedalei por dois dias quase sem descanso. Onde eu estava não sei dizer, mas as casas estavam começando a rarear e a estrada tornava-se mais esburacada nesse ponto. Decidi parar um pouco para descansar.  Já era noite. Eu sabia que não iria muito longe dali. Talvez conseguisse seguir até algum vilarejo e mendigar ali pelo resto da minha vida, quem sabe? Encostei a bicicleta na margem do caminho e sentei-me, olhando para o céu límpido.
            De algum lugar, podia ouvir um som. Um gemido. Um chiado, talvez. Vinha de trás de mim, onde havia uma espécie de declinação. Uma leve depressão. Uma estreita trilha – que permitia apenas a passagem de uma pessoa – levava selva adentro. Não havia motivos para temer qualquer coisa que pudesse estar ali. Comecei a descer aquele bosque escuro com ímpeto e a passos largos. A fome devorava-me por dentro. O frio que aquela vegetação – composta de grandes árvores, todas coloridas por um verde bastante escuro – jogava para mim trazia uma sensação de insegurança, que foi crescendo à medida que eu adentrava em sua morada.
            Com o passar dos minutos e o aumentar dos meus passos, percebi que a vegetação tornava-se mais densa, fechando-se ao meu redor. Apressei ainda mais meu passo, queria saber de onde vinha esse som o mais depressa possível. Parecia estar mais perto. Era uma espécie de lamento que ecoava. Sem perceber, havia entrado em um tipo de pântano lamacento, que me cobria os joelhos. O caminhar tornou-se mais difícil. Minha respiração acelerou e meu coração trabalhava a mil. Tinha um cheiro esquisito, aquele lugar. De vez em quando, alguma coisa parecia encostar-se a minhas pernas. Não podia ver o que era por causa da densa lama. Talvez raízes. Talvez serpentes. Talvez...
            Na região mais profunda do bosque, onde tudo era denso e o cheiro forte de carne em decomposição estava em todo lugar, pude distinguir uma espécie de gruta recostada e coberta por plantas. Um meio de camuflagem, talvez. Havia algo ali que emanava um miasma sombrio. Tive receio em adentrar, mas ainda assim o fiz.
            Afastei um pouco a vegetação que ali recobria e cruzei o portal. Não existia luz. O som havia parado. Tudo estava calmo e em perfeito silêncio, com exceção daqueles conhecidos sons que as cavernas produzem: passos ecoados, uma goteira em algum lugar, um morcego que se assustara. Minha presença foi sentida, obviamente. Apenas minha respiração se fazia relutante, quebrando o silêncio do local. Aproximei-me cada vez mais do clímax daquela caverna, onde se encontrava o que quer que seja.
            Depois de mais ou menos dois minutos caminhando, parei de repente. No meio daquela escuridão havia dois pontos vermelhos flutuantes. Dois olhos, pude perceber. Estavam na minha direção. Agora ouvia sua respiração também. Era corrosiva. Aquilo com certeza não era humano.
            Devido a minha distração, não percebi que lá fora tinha começado uma chuva torrencial. Seu barulho agora me vinha aos ouvidos. Pensei na bicicleta de meu pai ao léu, recostada na estrada. Solitária. Mas essa precipitação até que me foi útil. Um raio caiu muito perto da caverna, iluminando tudo a volta. Agora via claramente o que estava próximo a mim.
            Não era nada do que eu já havia visto, certamente. Nem parecia com nenhum animal existente no planeta. Poderia estar festejando por achar uma nova espécie, mas não era o que eu estava fazendo. Estava simplesmente paralisado com a imagem daquele ser. Tinha mais ou menos dois metros de altura. Sem pêlos. Sua cor era azul escuro. Seus olhos, vermelhos, como eu havia dito. Era extremamente magro, expondo seus ossos. Sua face esquelética era alongada e com um nariz bastante esticado. Sua boca era uma cratera sem dentes à mostra. Um buraco sem fim, foi o que me veio a mente. Apenas uma língua enorme jazia ali. Tinha duas orelhas extremamente eretas pareciam chifres gigantescos. Braços maiores do que as pernas. Era isso que estava parado na minha frente. Uma monstruosidade grotesca. Uma criatura horripilante. Uma aberração.
            Tudo estava escuro novamente. Agora, qualquer coisa poderia acontecer. Ouvi seus passos em minha direção. Um seguido do outro. Lentamente.  Estava tão incrivelmente perto que conseguia sentir o vento de sua respiração. Tirei a metade de uma maçã que havia em meu bolso e ofereci ao dono da casa que rejeitou meu presente. Parecia sentir nojo daquela fruta. “Um carnívoro, talvez?” pensei. A criatura fitou-me por mais algum tempo, em seguida, ouvi seus passos afastarem-se mais para o interior da caverna. Sua respiração agora estava mais devagar. “Talvez fosse dormir” pensei. Decidi fazer o mesmo. Por incrível que pareça, não senti medo do monstro.
            Ao despertar, senti algo nunca sentido por mim. Uma verdadeira fome, ago que me retirava as forças e corroia as paredes do estômago. Não havia comido nada há dois dias além de uma maçã. Mal conseguia me mexer. Não fazia idéia de quanto tempo tinha se passado desde que dormi, mas já havia amanhecido. A criatura estava na minha frente, a me observar. Seus olhos vermelhos arregalados. Tentei dizer algo, mas a única coisa que veio foi uma crise de tosses. O ser pareceu entender algo, adentrando a caverna. Esperei para saber o que ele iria fazer. O que ocorreu era a última coisa que eu esperava, caro leitor. O cujo apareceu para mim com a metade de um bezerro recentemente morto que deixava um rastro de sangue por onde passava. Seu cheiro era forte e me revirava o estômago, mas não sinto vergonha de dizer que o devorei inteiramente. Apenas os ossos sobraram. Minha fome era voraz. Sentia-me como um animal. Dormi por dois dias depois disso.
            Ao acordar, encontrei-me sozinho. Não havia criatura alguma – nem comida. Minha fome voltara e não tinha bezerros sangrentos na caverna. Estava de noite – perdi toda a noção de tempo que eu tinha – e o frio entrava na gruta. Decidi sair para procurar algo para comer. A sensação que eu sentia era intrigante: estava bem como nunca estive antes. Meu corpo parecia forte e saudável, apesar da fome. O ar entrava pelas minhas narinas e me dava ânimo. Sentia vontade de correr, saltar, atacar. E foi isso que fiz, caro leitor. Minha vontade de comer guiou-me até o meu destino. Tinha achado o lar de um casal de lebres brancas. Inicialmente, senti pena dos pobres animais, mas meu estômago falava mais alto. A lei do mais forte, certo? Apertei os pescoços dos coitados. Lágrimas escorreram pelos meu olhos. Era abominável o que eu estava fazendo. Alguns dias atrás, morava em uma casa luxuosa e todo o conforto. Agora, minha existência resumira-se em caçar animais. Sobreviver com minhas próprias mãos, literalmente. Acho que agora posso sentir o que os catadores de lixo sentem, ao procurarem alimento nos restos dos ricos. Voltei então para a gruta da criatura – que eu decidi chamar de Incógnita – e lá estava ele, alimentando-se de um cervo. Ao término, voltei a dormir mais uma vez.
            Quero relatar, caro leitor, um acontecimento estranho durante minha moradia junto do Incógnita. Certa vez, acordei ainda pela manhã, diferentemente do normal. Nesse dia, senti-me horrível. Tentei sair do lugar, mas não consegui. O sol parecia ferir-me os olhos. Não era como se eu houvesse me acostumado com a escuridão. Era uma dor que percorria todo o meu corpo e queimava-me os olhos. Nascia uma espécie de intolerância ao sol em mim. Algo que não era normal, certamente.
            Todos os dias eu saía à noite com meu companheiro de caçadas em busca de alimentos. Nunca nos falávamos, já que ele não entendia meu idioma. Por causa disso, andei perdendo o costume de falar. Passávamos a noite fora, em busca de alimentos, e voltávamos antes do sol nascer, obviamente.
            Não havia mais nenhuma noção de datas para mim. Todos os dias eram iguais. Acabei acostumando-me com aquele tipo de vida. Eu estava adquirindo os hábitos de Incógnita. Sua postura, seus modos, seu estilo de vida. Lembro-me claramente de uma vez que nos aventuramos a ir mais longinquamente em busca de alimento e acabamos chegando à rodovia interestadual, onde estava passando um homem a cavalo. Ele, ao ver eu e o incógnita, apressou-se e fugiu do local o mais depressa possível.
            Porém, depois de tudo que ele foi capaz de fazer por mim, acabei estragando tudo...
            Depois de longos dez anos, acordamos um dia em um verdadeiro dilúvio.  A chuva estava desabrigando os animais e arrancando as árvores. Fora a pior de todas que eu já havia presenciado. Fiquei terrivelmente assustado. Antes mesmo de poder fazer qualquer coisa, o início do fim aconteceu: um raio atingiu a estrutura da caverna – que não era das melhores – desmoronando sua entrada. A passagem estava bloqueada. Eu agora era um preso, junto apenas do ser de olhos vermelhos que ao meu lado estava. Fui falar algo, mas só saíram chiados.
            As horas foram passando e eu sabia que nunca sairíamos dali. Ninguém jamais passou pelo bosque durante esses dez anos. Por que passaria agora? Morreríamos de fome, e quando nos acharem, só restarão os ossos.
            Fome. Esta é a palavra que resume tudo. Na verdade, a palavra que move o mundo. Todos os animais vivem em função da sobrevivência. Até mesmo o ser humano, que julga-se tão racional, depende sua vida à esse instinto. Fome de alimento, de dinheiro, de poder. O home criou infinitas fomes para si, tornando-as a sua razão de viver. A minha era apenas a elementar e primitiva, aquela que acompanha os seres vivos desde o início da existência.
            Baseados nos que contei, muitos leitores poderão deduzir meus próximos passos. Não sei se esse seria o seu caso, caro leitor, mas isso não importa. O que importa é que, devido à essa fome, perdi totalmente o controle dos meus instintos e decidi que tinha de matar o meu companheiro. Jamais faria isso em sã consciência, mas eu não estava nela. Olhei para ele. Seus velhos olhos rubros me fitavam como sempre. Certa raiva começou a crescer dentro de mim. “Por que deixar um ser como esse vivo? Isso é uma aberração! Uma monstruosidade! Estarei fazendo um bem para o planeta ao matá-lo. Animal. Animal!” foram alguns de meus pensamentos. Os homens sempre precisam criar uma desculpa para cometer suas atrocidades, não é?
            Matei-o, caro leitor. E fiz isso sem pena alguma. Não esperei, apenas alimentei-me do que estava ao meu alcance o mais rápido possível. A necessidade faz o homem, claro. Qualquer um faria a mesma coisa em meu lugar, não é?
            Enquanto devorava o seu ventre, seu braço foi de encontro ao meus. Suas garras, grandes e afiadas, entraram na minha pele. Puxei de imediato, rasgando-me mais ainda. Estava vivo, o desgraçado. Sua força era incomparavelmente maior que a minha, ainda que machucado. Com um chute me empurrou para longe. Seria impossível derrotá-lo. Corri inconscientemente. Talvez isso eu conseguisse fazer melhor, devido ao grave ferimento que o afligia. Mesmo assim, ganhava terreno aos poucos, chegando perto de mim. Sua respiração ofegante ecoava pela gruta, sentia-o se aproximando.
            Meus passos me levaram para a parte mais interna do local. Nunca pude imaginar que aquela caverna tivesse tamanha profundidade. Minhas pernas começavam a se entregar, meu pulmão aos poucos tornava a se acomodar, fazendo com que o incógnita se aproximasse. Seu choque comigo era inevitável. Depois do que eu fiz, seria impossível sobreviver ao ataque de tal criatura.
            Era incrível! No fim da gruta havia uma saída, que dava do outro lado do bosque, com uma estrada rumo a rodovia interestadual! Só podia ser um milagre divino! Aquela visão me deu um ânimo novo, corri com forças que não esperava ter. A esperança novamente brilhando em meu peito. O monstro, aos poucos perdendo o fôlego, tanto que com mais um quilômetro vencido, a criatura entregou-se ao próprio cansaço, despejando sangue para todos os lados. Voltei e terminei o serviço que não pude completar anteriormente. Alimentei-me de sua carne, enterrei-o próximo a rodovia. Um carro passou ao lado e me viu fazendo tal coisa.
            Voltei para a caverna. De quando em vez dou uma passada pela rodovia, para ficar a escutar as conversas dos que passam tranqüilos. Ouvi boatos de que consideram tal bosque assombrado por uma criatura monstruosa. Seria o incógnita? Ou seria eu? Não importava mais. Minha antiga vida fora abandonada por inteiro. Os humanos agora só serviam para alimento.  
            

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