terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O que seria?


           
             Acordei de madrugada sentindo uma sede infernal, como de costume. Fazia isso todas as noites, mais ou menos no mesmo horário (que afinal eu sempre esquecia exatamente). Levantei. O sono me impediu de resvalar naquilo que possa se chamar inteligência e fez com que não me lembrasse de acender nenhuma luz. Não foi difícil chegar à cozinha. Fazia aquele trajeto de olhos fechados quase todos os dias. A única diferença é que, ao chegar, tinha um vulto gigantesco parado na minha frente. Era compulsivamente grande, com a cabeça encostada no teto e os pés pareciam esticados além do chão, como se fosse mole e não fosse o seu final que estivesse apoiando-o, mas uma parte antes dele. Seus braços igualmente grandes e moles, assim como seu tronco e seu rosto. Parecia ter mais membros do que uma pessoa, de fato. Não era uma pessoa, percebi isso assim que encostei o olho nele. O mais estranho foi, talvez, deparar-me com a surpresa dele refletida na reação a me ver, tão surpreso quanto eu fiquei. Seu corpo pareceu perpassado por uma corrente elétrica que o estremeceu e o fez parar o que estava fazendo. Encaramo-nos por alguns segundos, naqueles segundos que todo mundo sabe que são excessivamente longos, mas que, por incrível que pareça – talvez seja o fato mais triste neles –, passam.
               E passaram.
            A criatura pareceu mais mole do que o de costume, de uma estrutura quase coloidal. Seu corpo esticou-se mais e mais, a ponto de tornar-se uma gosma uniforme e preta que se estendia por metade da cozinha. Num jato de agonia – acompanhado de um grito agudo – adentrou por minha goela abaixo. Todo aquele monstro de dois metros e pouco, um enorme monte de pudim preto, uma caixa d’água repleta de lama barrenta ou uma fossa entupida de bosta, tudo penetrando em minha garganta num processo derivado do vômito, mas ao contrário. Não sei o motivo, mas lembrei de quando era criança. Um mal estar assombroso apossou-se do meu corpo.
            Voltei pra cama. Nunca mais tive ereção ou ânimo para qualquer coisa. Só lembro que, no momento que ele adentrava, seu chiado fino fez algum sentido em meu cérebro, e ele dizia: você nunca mais vai ser feliz. Serei sua sombra, ao seu lado enquanto caminha por entre o mundo, vagabundando em busca do que quer que seja. Não sentirá vontade de trabalhar, ou de ter uma garota, ou mesmo de se alimentar. Não que seu desejo não exista mais. Eu simplesmente vou devorá-lo todo, enxugarei isso que pra mim é alimento até que morra.
            Ele não voltou a falar comigo, por isso achei que pudesse estar louco, ou que tivesse tudo sido um sonho. Tantos anos depois, às vezes paro pra pensar se tudo isso não foi só uma desculpa para que pudesse me tornar o inválido que sou hoje. Mas pensar nessas coisas dói tanto!

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