Acordei de madrugada sentindo uma sede infernal, como de
costume. Fazia isso todas as noites, mais ou menos no mesmo horário (que afinal
eu sempre esquecia exatamente). Levantei. O sono me impediu de resvalar naquilo
que possa se chamar inteligência e fez com que não me lembrasse de acender
nenhuma luz. Não foi difícil chegar à cozinha. Fazia aquele trajeto de olhos
fechados quase todos os dias. A única diferença é que, ao chegar, tinha um
vulto gigantesco parado na minha frente. Era compulsivamente grande, com a
cabeça encostada no teto e os pés pareciam esticados além do chão, como se
fosse mole e não fosse o seu final que estivesse apoiando-o, mas uma parte
antes dele. Seus braços igualmente grandes e moles, assim como seu tronco e seu
rosto. Parecia ter mais membros do que uma pessoa, de fato. Não era uma pessoa,
percebi isso assim que encostei o olho nele. O mais estranho foi, talvez,
deparar-me com a surpresa dele refletida na reação a me ver, tão surpreso
quanto eu fiquei. Seu corpo pareceu perpassado por uma corrente elétrica que o
estremeceu e o fez parar o que estava fazendo. Encaramo-nos por alguns
segundos, naqueles segundos que todo mundo sabe que são excessivamente longos,
mas que, por incrível que pareça – talvez seja o fato mais triste neles –,
passam.
E passaram.
A criatura pareceu mais mole do que o de costume, de uma
estrutura quase coloidal. Seu corpo esticou-se mais e mais, a ponto de
tornar-se uma gosma uniforme e preta que se estendia por metade da cozinha. Num
jato de agonia – acompanhado de um grito agudo – adentrou por minha goela
abaixo. Todo aquele monstro de dois metros e pouco, um enorme monte de pudim
preto, uma caixa d’água repleta de lama barrenta ou uma fossa entupida de
bosta, tudo penetrando em minha garganta num processo derivado do vômito, mas ao
contrário. Não sei o motivo, mas lembrei de quando era criança. Um mal estar
assombroso apossou-se do meu corpo.
Voltei pra cama. Nunca mais tive ereção ou ânimo para
qualquer coisa. Só lembro que, no momento que ele adentrava, seu chiado fino fez
algum sentido em meu cérebro, e ele dizia: você nunca mais vai ser feliz. Serei
sua sombra, ao seu lado enquanto caminha por entre o mundo, vagabundando em
busca do que quer que seja. Não sentirá vontade de trabalhar, ou de ter uma
garota, ou mesmo de se alimentar. Não que seu desejo não exista mais. Eu simplesmente
vou devorá-lo todo, enxugarei isso que pra mim é alimento até que morra.
Ele não voltou a falar comigo, por isso achei que pudesse
estar louco, ou que tivesse tudo sido um sonho. Tantos anos depois, às vezes
paro pra pensar se tudo isso não foi só uma desculpa para que pudesse me tornar
o inválido que sou hoje. Mas pensar nessas coisas dói tanto!
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