terça-feira, 28 de agosto de 2012

Azulidão



¡Silencio! No hay banda!

Aquém do princípio do prazer, estava ela, com olhos inadequadamente azulados, perante uma multidão impermeavelmente católica. Além da fronteira entre sonho e realidade, seus olhos, cansados e sem expressão alguma, expressavam o não dito na sua fala, e confundiam-se, distorcendo totalmente o seu discurso. Não havia discurso, na verdade. Tudo que via era plágio de um plágio. Um especialista em olhos não notou defeito algum naqueles tão reluzentes e abatidos. São perfeitos, dizia ele. Mas a percepção que tinha lhe incomodava. O mundo era o dobro do mundo. Cada gota interespacial significava duas vezes sua significância. Mas, pensava a garotinha, como significa significar algo duas vezes, se não existe uma analogia, algo com que possa comparar? Não podia avaliar a obscuridade dos seus pensamentos se os seus olhos azuis eram tão perfeitos daquele jeito. Colegas de segunda-feira falavam-lhe pelas costas, do quanto aqueles olhos eram arrogantes. Outra vez, um velho jurou ver o seu felino de estimação dos tempos da infância refletindo naqueles olhos. Tentou adentrá-los, chorando, como se aquilo fosse lhe fazer regressar no tempo. Ninguém aguentava aquilo. Uma oradora religiosa nomeou-os como os olhos do satanás. O demônio age misteriosamente, mas todos sabemos que, no meio das chamas escarlates do inferno, olhos azuis brilham lancinantemente, como se gargalhassem da nossa cara, dizia ela. É, meus fiéis, a desgraça está nos olhos, e ela pode lhes contaminar, tanto pelo medo quanto pelo ódio, que os consumirá por dentro e, quando se olharem no espelho, apenas aquela azulidão grotesca refletirá, imponente e perversa! Afastem-se daquilo que corroerá toda a moral do nosso tempo, era o que dizia, arfando a plenos pulmões. Entretanto, não havia escapatória alguma. Não se aproximavam, mas nada podia ser feito em relação aos olhos. Continuavam duas vezes à frente. Continuavam olhando. Adequadamente inadequados. Incomodamente azuis. O julgamento final adviria daqueles olhos, que, infantilmente curiosos, insistiam em espiar as pessoas por meio de frestas escondidas. As pernas corriam como milhões de espermatozoides. Juntos das vozes, que cantavam um hino para a morte. Nada fazia sentido em tudo aquilo. Nunca fez mesmo. No final, deitada sobre um leito de bilhões de almas auto julgadas em tormento, dois olhos azuis se erguiam, presos num corpo de criança, biologicamente vivo, psicologicamente perverso e compulsivamente observador, que permanecia a duplicar o induplicável, repetindo-se sua glória e o seu tormento para toda a eternidade. Eles nunca foram inocentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário